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Retrospectiva 2023

2023 não começou muito calmo. Costuma ser assim quando a passagem de ano traz uma mudança de governo. Dessa vez foi bem complexa.

Em janeiro, no restrito plano da economia 2023, a dificuldade começava pela longa e elaborada costura para definir o novo ministério, urdida simultaneamente à aprovação de uma Emenda Constitucional de índole orçamentária (conhecida como “a PEC de Transição”), passando pelas arruaças golpistas de 8 de janeiro, o anúncio das “inconsistências” nas Americanas no dia 11 e culminando com o primeiro “pacote econômico” do ministro Fernando Haddad no dia 12.

A importância da economia 2023 para o novo governo se revela prontamente no novo desenho para o ministério, em cujo centro está o desfazimento do antigo ministério da Economia. O ministério antes ocupado por Paulo Guedes seria decomposto em seis outros: Trabalho (Luiz Marinho, da CUT), Previdência (Carlos Lupi, do PDT), Indústria e Comércio (Geraldo Alckmin, vice-presidente), Gestão (Ester Dweck, professora da UFRJ), Planejamento e Orçamento (Simone Tebet, senadora do PMDB) e Fazenda (Fernando Haddad).

Em virtude desse desenho, que é parecido com o de 1994, teve que ser reconstruído (através da Medida Provisória de n. 1.158) o CMN (Conselho Monetário Nacional), bem como de sua Comissão Técnica da Moeda e do Crédito (COMOC). O perigo era alguma alteração no COPOM e sua disciplina, ou no equilíbrio de forças da governança da moeda estabelecida em 1994.

Felizmente, o redesenho não trouxe nenhuma inovação, inclusive e especialmente na delicada dinâmica do sistema de metas para a inflação. O novo CMN, reassumindo o desenho com três membros, aparece publicamente pela primeira vez no anúncio do pacote do dia 12 de janeiro, o primeiro do ministro Haddad, com jeito de governo de “coalizão”: o PT (Haddad), a 3ª via (Tebet) e o Banco Central do Brasil (Campos Neto).

O presidente da República demorou a sair do palanque, especialmente pela sua insistência em tratar do Banco Central e dos juros. Foi a primeira eleição em que o BCB estava no regime da Lei Complementar 179, de 2021, o primeiro e dificílimo teste do novo modelo institucional. Nesse sistema, os dirigentes do BCB, incluído o seu presidente, tinham mandatos a cumprir e não eram mais de livre nomeação do presidente eleito. No tocante a seus dirigentes, o BCB passava a ter regras semelhantes às de outras agências reguladoras, vale dizer, dirigentes com mandatos não coincidentes com os do presidente da República.

A influência do novo arranjo sobre as decisões de política monetária é um tópico em aberto. Teria o BCB reduzido demasiadamente a SELIC no terço final da pandemia? Teria elevado demais logo a seguir, durante o período eleitoral? Teria mantido a SELIC muito alta muito tempo?

Mesmo sem uma resposta muito clara para essas perguntas, a sensação é de que foi bem-sucedida a alteração institucional elevando a autonomia do BCB. O país não experimentou instabilidade macroeconômica ou financeira durante a mais contenciosa e polarizada de todas as eleições presidenciais desde 1989.

A dinâmica decisória na área econômica seria reveladora, sobretudo tendo em vista que a economia 2023 não foi um assunto muito debatido nessas eleições. Quais eram os reais planos econômicos do presidente eleito?

Em Brasília, o que se ouvia era que o presidente da República ia mandar na Economia 2023 porque dois ministros seus são suficientes para formar uma maioria no CMN. No entanto, esse colegiado sempre decide por consenso, de modo que não teve voto divergente, nem voto “ad referendum” desde a sua reforma em 1994.

Como iria funcionar esse novo CMN?

Tudo parecia muito novo e experimental na área econômica, uma vez que os dois ministros a ocupar as pastas “protagonistas”, Fazenda e Planejamento, não eram do ramo e sequer imaginavam que iam estar nessas posições 30 dias antes de suas nomeações.

Impossível afastar a sensação de improviso, um tanto dissimulada pela diligência de Haddad e sua vontade de acertar.

Essa discussão sobre influência política na moeda, ou sobre “bancadas” e votos divergentes, não prospera com respeito ao CMN, mas vai se transportar ao longo do ano para o COPOM, um colegiado de nove membros e que, ao final de 2023, já teria quatro novos integrantes escolhidos pela atual administração. Mas a liderança do BCB na condução da política monetária, vale dizer, a integridade do sistema de metas, não foi alterada, a despeito do mau humor presidencial quanto aos juros e quanto à governança da moeda.

O mérito pela preservação do sistema é parte conceitual, parte pessoal.

O sistema de metas já conta vários anos de bons serviços ao país. Seria uma tolice mudar. O conceito estava maduro, e assim permanece. Mas o mérito pessoal cabe ao presidente do BCB, Roberto Campos Neto, que teve muita paciência, atributo essencial para o primeiro presidente do BCB com mandato convivendo com um presidente da República ferozmente adversário daquele que o nomeou e com certa má vontade relativamente à delicada construção institucional que veio a herdar.

Desancar os juros altos é normal e aceitável, para qualquer político, desde que sem exageros. Todos os presidentes sempre reclamaram da taxa de juros. Como também os senadores, inclusive da situação. Mais ou menos como os exportadores reclamam da taxa de câmbio. Quando podia demitir o presidente do BCB “ad nutum” o presidente da República se queixava dos juros em “off”. Fazê-lo abertamente convidava a pergunta sobre por que não demitir. Quando perdeu esse poder, o presidente ganhou o privilégio de reclamar publicamente, ainda que sem consequência. Parece que Lula se sente melhor nessa nova situação.

Provocar o mercado financeiro

São comuns as diferenças de opinião sobre o nível adequado de juros diante de variações conjunturais na economia 2023. Entretanto, as falas do presidente sobre esse assunto, sobretudo no primeiro semestre do ano, deixaram atrás de si uma sensação ruim, mesmo sem ter nenhum efeito prático, senão o de provocar desnecessariamente o mercado financeiro, que parecia disposto a abraçar a nova administração desde o primeiro dia.

Essas tensões escalaram em março, quando Lula se referiu a Roberto Campos Neto como “aquele cidadão”. Era grotesco, ainda que não inconstitucional, o presidente da República ralhar em público com o presidente do BCB, com isso se equiparando ao presidente anterior em suas diatribes contra os conselheiros da ANVISA. Era uma repetição da implicância com o conhecimento especializado, agora em economia.

Se a ideia era “pazuelizar” o BCB, esta seria a missão dos primeiros dirigentes indicados por Lula para o BCB, sobretudo Gabriel Galípolo, que vinha ocupando a Secretaria Executiva do ministério da Fazenda, e foi o nome escolhido por Haddad (talvez para evitar um nome do PT). Mas não foi o que se observou. Na primeira reunião do COPOM de que participou, a 256ª, Galípolo votou com Roberto Campos Neto por uma redução da SELIC de meio ponto. O placar foi de 5×4 para a posição vencedora (queda de meio ponto) contra a queda de 0,25%. Foi o primeiro 5 a 4 da história do COPOM.

Nas reuniões posteriores do COPOM, as decisões foram de consenso na redução de 0,5% na SELIC, de modo a encerrar o ano em 11,75%. Galípolo não foi voto divergente em nenhuma dessas reuniões e nem foi mais uma presença na imprensa e nas redes sociais, tampouco o “contraponto” à política monetária. É discutível se devem existir “bancadas” no COPOM, inclusive de natureza partidária, uma “vermelha” (lulista, petista ou abertamente heterodoxa) e outra “muito durona”, como definiria o ministro Haddad em dezembro.

Seriam as indicações para o BC como as que o presidente faz para o STF, pessoas com o “notório saber”, mas “de confiança”, como Cristiano Zanin e Flavio Dino?

Lula já indicou quatro novos dirigentes do BCB, dois servidores da casa, para diretorias com esse perfil, Ailton Aquino e Rodrigo Teixeira, e dois economistas “de fora”, Galípolo e Paulo Picchetti, professor da FGV-SP. No final de 2024, terminam os mandatos de Roberto Campos Neto e de dois outros diretores. Lula terá o “controle” da instituição ao escolher os substitutos, sobretudo o presidente, somando sete nomeados seus de um colegiado de nove.

Como isso vai alterar a política monetária?

Espera-se que não haja alteração em 2024 e adiante. Tal como se passou em 2023.

Resta ver como o presidente fará isso através de suas escolhas, inclusive e principalmente para o lugar de Campos Neto, que terminou o ano de 2023 participando alegremente de churrasco na Granja do Torto em harmonia com o presidente e seu entorno.

A meta de inflação para 2023 era de 3,25% com 1,5% de margem de tolerância, portanto com um “teto” de 4,75% e as expectativas para o IPCA para 2023 aferidas pelo Focus (em 22/12, último do ano) estavam em 4,46%. Ou seja, tudo indica que o BCB cumprirá a meta, embora dentro do intervalo de tolerância. Não haverá “carta aberta” desta vez, e o primeiro presidente do BCB com mandato deixará o seu posto com sua missão cumprida. Talvez tão difícil quanto reduzir o IPCA tenha sido engolir em seco diante de provocações públicas a que esteve sujeito. O “ganho institucional” foi gigantesco.

Foi um ano complexo do ponto de vista fiscal, e os temas principais foram de natureza orçamentária. O enredo começa antes da posse, com a já citada PEC da Transição, um pequeno milagre de governabilidade, pelo qual a legislatura anterior passou uma emenda constitucional em um mês, criando condições para que o Bolsa Família ampliado continuasse a ser pago sem interrupções.

Recriar certa normalidade orçamentária e fiscal era um desafio claro, em vista da singularidade das soluções encontradas para lidar com a pandemia no governo anterior. Não faz sentido fazer política fiscal através de emendas constitucionais. Ou seja, a de transição devia ser a última, ao menos tratando de orçamento.

No corpo dessa PEC, que se tornou a EC126, de 21/12/2022, havia um comando importante, que veio a se tornar o “arcabouço fiscal”. Conforme estabelecido no seu artigo 6, o presidente da República deveria “encaminhar ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável e que [apenas] depois da sanção desse projeto diversos artigos do ADCT estarão revocados, especificamente os que definem a mecânica do “teto de gastos”[1].

O governo encaminhou esse projeto no dia 30 de março, última quinta-feira do mês, no final do expediente. Não foi, como alguns esperavam, uma nova lei para regular o orçamento, a fim de substituir a lei 4.320/1964 e prestigiar o voto da ministra Carmen Lúcia no assunto das emendas ao orçamento secreto. Para a substituição do “teto”, o governo trouxe regras fiscais de natureza macro, que passaram a dominar os debates sobre política fiscal no restante do ano. As declarações e as intenções pareciam boas, sobretudo tendo em vista que o “novo teto”, ou o novo arcabouço, estava sendo proposto por opositores ferrenhos da ideia de “teto” ou mesmo de responsabilidade fiscal e sustentabilidade da dívida.

O “arcabouço” provocou duas famílias de juízos. De um lado, emergiram dúvidas sobre o real compromisso com suas metas, eis que a nova fórmula parecia, em seus aspectos formais, a famosa banda diagonal endógena, de triste memória. Ou seja, parecia uma fórmula de impossível execução, cujo anúncio se esgotava em si mesmo. Seria mesmo para valer? Ou o arcabouço estaria destinado a servir como um “protocolo do gasto”, conforme a definição do professor Rogério Werneck?

De outro lado, as diversas análises de especialistas convergiam em que as metas anunciadas para o resultado primário somente seriam viáveis na presença de ganhos de arrecadação superiores a 150 bilhões. Não parecia um número tão difícil num orçamento de 2 trilhões, mas o silêncio governamental sobre o assunto mostrava que não havia nenhuma ideia sobre como consegui-lo. Eram números à procura de um plano, e não a expressão numérica de um plano de governo.

Seria o prenúncio de uma elevação relevante da carga tributária? Pacotes tributários estariam a caminho? Ou seria simples voluntarismo?

A conta precisa fechar

Inicialmente, o ministro negou a intenção de aumentar a carga tributária: “se por isso se entende a criação de novos tributos ou aumento de alíquota dos tributos existentes, não é a ideia, não é disso que se trata”. Mas passou o restante do ano correndo atrás de receitas, meio capturado pela Receita Federal, trabalhando “no subsolo” das renúncias, bases de cálculo e decisões judiciais (e administrativas), e muito empenhado em evitar algum a contenção de despesas.

Simultaneamente, o ministro precisava afastar a urgência de aumentar a receita do debate sobre a reforma tributária, inclusive para não a comprometer.

O fato incontornável é que se o inflacionismo está afastado, bem como o aumento do endividamento, a manutenção e especialmente a elevação do gasto (investimento) público, que é típica e própria dos governos petistas, dependerão do aumento dos impostos. A conta precisa fechar. Tipicamente, o “fechamento” pela direita se dá através da redução do gasto (do tamanho do Estado). Pela esquerda, o que se apresenta é o aumento nos impostos e de sua progressividade.

O esforço de preservar a integridade dessas metas do arcabouço diante do “fogo amigo” vindo das esferas políticas foi uma das grandes conquistas do ministro Haddad nesse primeiro ano de governo. Não obstante, a novidade representada pelo novo arcabouço fiscal não gerou as expectativas favoráveis que se esperava quanto ao regime fiscal. Tudo dependeria de um equilíbrio político meio frágil, dentro do governo, uma vez que ficava sujeito às vontades cambiantes do presidente da República e de outras lideranças políticas. Portanto, o arcabouço não alterou de forma material o balanço de forças no assunto da política monetária.

A apresentação do arcabouço fiscal parecia destinada a confrontar o BCB com a obrigação de apressar a redução nos juros, uma vez que resolvesse a evidente inconsistência entre a meta da inflação e a política fiscal. Não era uma má teoria, se, de fato, o arcabouço fornecesse a solução para o problema fiscal brasileiro. Só que não era isso.

Pior, até: com o problema fiscal sem solução, muitas perguntas difíceis se apresentavam. Será mesmo possível que o presidente Lula, em seu terceiro mandato, fora de circunstâncias excepcionais no campo das commodities e de heranças magníficas, conseguirá governar com responsabilidade fiscal? A Nova Matriz macroeconômica poderia ressurgir?

A desproporção entre desejos e possibilidades é um problema crônico da política fiscal. A União esgotou sua capacidade de se endividar e não pode pagar suas contas fabricando papel pintado. Exatamente como os entes federativos diante das restrições da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal). O ministro Haddad talvez reconheça o que tem diante de si: Brasília se parece com uma grande prefeitura com problemas de caixa.

Talvez o ministro tenha se iludido em pensar que a União é diferente, pois, em tese, pode emitir moeda e se endividar em variados formatos. Entretanto, dificilmente terá prefigurado que esses truques já estão esgotados há anos.

As primeiras votações importantes, a partir de propostas do novo ministro, ocorreram apenas em maio, com resultados mistos. As vitórias parecem de Lira, as derrotas do Executivo. O governo quase perde a MP 1.154/23 que redefinia a Esplanada (a nova arquitetura dos ministérios). Seria uma crise. A relação com o Legislativo parecia tão frágil em meados de 2023 que era melhor não declarar as prioridades. Com isso, o governo evitava falar de seus planos econômicos, mas conversava e negociava concessões, emendas e mesmo cadeiras em ministérios para o chamado Centrão.

Foi então que veio a notícia do crescimento do PIB no primeiro trimestre: 1,9% de crescimento no trimestre sobre o trimestre anterior, um número muito forte, e bem maior que a mediana das expectativas. Em condições normais uma notícia boa; no entanto, a explicação para a surpresa residiu integralmente no comportamento do PIB agropecuário, 21,6% de crescimento no trimestre sobre o trimestre anterior. Era um “Pibão desconfortável”, conforme definiu um observador arguto (Carlos Alberto Sardenberg, em coluna para o jornal O Globo, de 03/06), uma vez que o governo parece associar o agro ao governo anterior.

Com ventos melhores na economia 2023, ainda que acidentais, tudo se encaixou.

Em junho, começa uma acomodação do rating do país, quando a S&P anunciou que o colocou o risco soberano do país em perspectiva positiva. O upgrade viria em dezembro, depois de votada a reforma tributária no Senado. Em julho, a Fitch faria o seu upgrade, mas todas as agências se alinharam em colocar o Brasil dois níveis abaixo do grau de investimento, e sem perspectiva de ir além disso. É o que temos por ora, e vai ser difícil sair desse nível sem um “fato novo” de certo impacto.

“Carta aos brasileiros” em outro formato

A meta de buscar o investment grade, uma vez adotada, ofereceria uma excelente fórmula para domar os instintos keynesianos do governo, e avançar pautas reformistas. Mas o assunto é tratado com muita cautela. As “reformas” que tanto agradam as agências não fazem parte das aspirações dos governos de esquerda. Talvez por isso mesmo seja considerada “histórica” a reforma tributária. “Histórica” porque improvável, e por isso mesmo um tanto distante do formato ideal.

Com efeito, a aprovação da reforma tributária, o evento que precipitou o upgrade da S&P não era uma pauta da esquerda. Na verdade, a reforma tributária era uma das reformas do Consenso de Washington, e sua justificativa em geral tinha que ver com a melhoria no ambiente de negócios, um assunto bem distante dos ideais históricos do petismo e de Lula.

Ao longo de sua intricada tramitação, ficou claro que o aumento da receita para sustentar um Estado maior não se confunde com a racionalização e simplificação dos impostos sobre o consumo. São temas diferentes. E não deu para misturar.

O fato é que os festejos na aprovação da reforma acabaram sendo reveladores. A pauta era mais transcendente do que parecia, mais do que simplesmente um assunto tributário.

A aposta na reforma tributária talvez melhor se explique pelo cálculo político. Era uma forma de escrever uma “carta aos brasileiros” em outro formato, com o intuito de agradar e assegurar apoios no mundo empresarial.

A energia política a ser empregada no projeto seria muito grande, pois sua tramitação seria, como efetivamente tem sido, longa e tormentosa. O assunto se estendeu pelo segundo semestre, e não terminou em dezembro com a promulgação da emenda. As leis complementares ainda vão consumir muita energia do governo ao longo deste ano e mesmo depois. O prazo total para a computação dos efeitos da reforma pode ser maior que uma década.

Como lição, resta observar que nada parece consumir mais energia política do que encrencas federativas, de modo que tudo o que se pode prognosticar sobre o andamento desse assunto, mesmo na restrita esfera da regulamentação, é que vai se prolongar além do esperado e com desgastes maiores do que pensa.

Nenhum governo foi tão longe quanto este nesse assunto, só resta saber se isto será bom ou ruim, no mérito ou como fato político. É cedo para aferir, mas certamente funcionou para ajudar a aterrissar o novo governo no terreno empresarial.

É compreensível e justa, portanto, a comemoração da sanção da emenda, ocorrida com muita festa em dezembro. É um segundo pequeno milagre de governabilidade que permite certo otimismo acerca das possibilidades de superação dos impasses decorrentes da polarização política. Mas não é o fim desse jogo.

Choques de oferta positivos, como os que operaram em 2023 para explicar o bom resultado das exportações e da balança comercial, às vezes caem dos céus, como no caso do super ciclo das commodities de uns anos passados. Mais seguro, entretanto, é fazer reformas mirando no aumento de produtividade e no ambiente de negócios.

Entretanto, a ênfase nas medidas e pautas reformistas modernizadoras, repita-se, não faz parte das prioridades declaradas do governo e do presidente Lula. Até pelo contrário, para melhor apaziguar aliados “radicais porém sinceros”, ou por afinidade ideológica mesmo, o governo fez gestões, felizmente sem sucesso, para interromper medidas como a privatização da Eletrobras e o marco do Saneamento, por exemplo.

Isso para não falar das ambiguidades do governo na governança da Petrobras.

Pode ser apenas “jogar para a torcida”, manobrar as aparências ou administrar uma coalisão política muito heterogênea. Ou não. Pode ser mesmo falta de liderança e de projeto. Impossível saber. A indefinição do governo na economia 2023, e em especial a sua hesitação do governo no assunto do equilíbrio fiscal, é uma de suas marcas mais visíveis.

Em outubro, refletindo essas dúvidas, o presidente da República deu uma longa e impactante entrevista parecendo querer desqualificar as metas fiscais do governo.

Nada pode ser pior para o ministro Haddad que o “fogo amigo” vindo do Palácio. O grande “plano de governo” na economia 2023 foi o arcabouço e seus números: se isso não é importante, o que sobra?

Haddad sentiu o golpe, e se possui 7 vidas, ou umas 3 ou 4, como se diz da média dos ministros da Fazenda, uma já se foi.

A manifestação de Lula sobre as metas fiscais de Haddad foi comparada ao famoso desabafo de Dilma Rousseff, pelo qual “gasto é vida”, a fala que serviu como marco definidor da Nova Matriz, de triste memória.

Como ilustração para as contradições em que se vê enredado o Ministro, note-se que o arcabouço “determina” uma expansão do gasto primário e, ao mesmo tempo, uma redução do déficit. É claro que essas duas coisas somente podem ocorrer simultaneamente se a receita crescer. Se isso não acontecer, o que vai se passar? Qual a determinação que vai prevalecer? A do gasto ou a do equilíbrio fiscal (na forma da lei de reponsabilidade Fiscal, que também é lei complementar)? São ponderáveis os riscos de desobediência aos ritos da política fiscal?[2]

O próprio presidente da República perguntou, em sua entrevista: “se for necessário esse país fazer endividamento para crescer, qual o problema?”

Pois é. Se o presidente não vê problema, nós temos, então, dois problemas.

Tudo considerado, entretanto, o país está bem mais maduro do que se supõe nos assuntos fiscais. O keynesianismo inflacionista não se confunde com a voracidade microeconômica do Legislativo para avançar no terreno das emendas orçamentárias. Não há nada ideológico na fisiologia, que vive de trocados. Caro mesmo é o desenvolvimentismo inflacionista.

O grande desafio do governo em seu primeiro ano foi o de aprender a viver sob limites, fiscais e monetários. O Legislativo e o BCB cumpriram seus respectivos papeis, a vida seguiu.

Não foi um ano especialmente bom na economia, nem ruim. Houve ganhos conceituais, especialmente relacionados ao desarme de várias bombas, tanto na oposição como na situação, e há muitos desafios pela frente.

Mas a sensação é positiva ao final. O país parece mais preparado para o futuro. Talvez prontidão não seja tudo, como supõe o célebre Príncipe da Dinamarca (‘Readiness is all’, Ato 5, cena 2). É muito, mas certamente não é garantia de sucesso.


[1] ADCT = Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e os artigos relevantes são os seguintes: 106, 107, 109, 110, 111, 111-A, 112 e 114.

[2] A pergunta é feita exatamente nesses termos por Marcos Mendes e Marcos Lisboa em “Sobre o limite de despesas no Arcabouço Fiscal” em Brazil Journal 22/1//2023.

Retrospectiva 2023 na Rio Bravo Investimentos

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Brasil 2023: Um diagnóstico da saúde pública no Brasil

Apesar de contar com um sistema universal, o SUS, a saúde ainda é foco de preocupação dos brasileiros. Prova disso está em um levantamento recente, divulgado nesta semana pelo Datafolha: para 87% dos jovens brasileiros, a saúde é muito importante, enquanto 13% a destacam como importante.

Pensando nisso, o quinto episódio do Videocast Rio Bravo traz uma discussão atenta aos elementos decisivos deste tema.

Para além do já citado Sistema Único de Saúde, o SUS, que colocado à prova e saiu elogiado da pandemia de COVID_19, a importância da atenção primária, dos problemas de orçamento e da desigualdade são os tópicos analisados pelos convidados do videocast. O programa conta com a participação de Roberta Grabert – médica ginecologista especializada em telemedicina, MBA em gestão de saúde e liderança associada ao movimento Livres – e Gonzalo Vecina, docente da Faculdade de Saúde Pública (USP) e com ampla experiência na administração pública na área da saúde.

podcasts

Podcast 721 – Renato Meirelles: Há espaço para reconciliação depois das eleições deste ano?

Na história recente do Brasil, jamais houve uma eleição como esta. Já é lugar-comum falar de polarização política, mas agora a novidade parece ser uma disputa vai além da escolha do próximo presidente da República. É uma cisma que abala amizades, interfere nos relacionamentos familiares e transforma a escolha política em baliza para definir quem pode e quem não pode participar do nosso convívio. A pergunta que norteia nosso Podcast nesta semana é a seguinte: há espaço para a reconciliação ou este é um novo normal, um momento a partir do qual haverá a polarização de tudo? Para responder a essa e a outras questões, nosso convidado de hoje no Podcast Rio Bravo é Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. Renato é um dos principais especialistas em consumo e opinião pública do país e autor, entre outros, do livro “Um país chamado favela”.

podcasts

Podcast 722 – Antonio Risério: Os movimentos identitários e os perigos da cultura woke

A trajetória intelectual de Antonio Risério, o convidado desta semana no nosso Podcast, remonta à militância de esquerda – no caso, da vertente trotskista. Isso significa que Risério está acostumado a nadar contra a corrente, o que explica, também, seu apreço pela polêmica. Exemplo disso pode ser constatado em um de seus livros mais recentes, cujo título é “Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária”, publicado pela Topbooks. Em uma contundente entrevista ao nosso Podcast, Risério explica o que o levou a escrever o livro, acusa os movimentos identitários de terem comprado uma agenda ideológica estranha à sociedade brasileira; critica o capitalismo woke, como é chamada a prática adotada por grandes corporações de propagar consciência social junto a seus colaboradores, sem efetivamente alterar sua estrutura de poder; e alerta para os riscos que o governo Lula enfrentará se embarcar na agenda identitária.

artigos

Gustavo Franco: Lula e Santo Agostinho

Pouco se sabe sobre os planos e intenções do atual governo a respeito da economia nacional.

Pouco se sabe sobre o novo governo, passados os primeiros dias do resultado do segundo turno das eleições.

A principal razão é simples: não foi uma campanha sobre a economia, portanto, não há programas nem documentos que antecipem muita coisa concreta, além das ideias gerais que se conhece. Restam apenas as falas do candidato, nas quais algumas promessas foram tomando corpo.


O principal dado positivo da transição é que nada muda no Banco Central, ponto para a independência do BCB, ou para a Lei Complementar 179, mais uma vez. Ao menos por ora. Com o tempo será preciso observar a convivência entre os dirigentes do BCB e os novos ocupantes dos cargos no ministério da Economia, ou ministérios que o sucederem.

No capítulo das dúvidas, sempre observando os temas do ângulo da economia, é possível separar os assuntos em três tipos: os vagos, os cosméticos e os impossíveis. Deliberadamente vaga é a alusão à “reindustrialização do Brasil”, assunto que permite diferentes leituras, mas que não tem necessariamente nenhuma expressão concreta. Nos casos de assuntos de interesse em que o novo governo nada tem a dizer, sobra apenas a criação de um ministério para tratar do assunto, conforme a velha anedota sobre grupos de trabalho.

Parece certo que será recriado o ministério da Indústria, bem como outro, dos Povos Originários, mas não há clareza sobre o que muda no BNDES. Fala-se em papéis ampliados, mas a nova fórmula da TLP, antiga TJLP, reduziu drasticamente o subsídio nos financiamentos da instituição. Fica dificultado o retorno do BNDES aos velhos papéis.


Os assuntos cosméticos têm a ver com o “rebranding” de políticas existentes (“Auxílio Brasil” se torna “Bolsa Família”, “Casa Verde Amarela” se torna “Minha Casa Minha Vida”), o “logo” do novo governo, com mais cores, as campanhas publicitárias, assim como novas fórmulas marqueteiras de estressar a mudança de ênfase (social e/ ou woke) dessa administração relativamente à anterior. A ênfase na agenda ambiental (sobretudo nos eventos), bem como nos temas referentes ao apoio à cultura, é fácil de se antecipar. Programas ou iniciativas específicas para o Farmácia Popular e para as universidades públicas também são esperados na primeira hora, com o objetivo claro de assinalar uma mudança de filosofia e prioridade
nessas áreas.

No terreno mais direto da economia, a primeira consideração deverá ser o desmanche do superministério da Economia que hoje congrega cinco pastas da época em que Lula foi presidente pela última vez (Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio, Trabalho e Previdência). Com tantos aliados a atender, e com a dificuldade “estrutural” em trabalhar com o conceito de “Posto Ipiranga”, será natural que o novo presidente retroaja ao desenho anterior, que lhe dá mais vagas para acomodar amigos e aliados e lhe evita o incômodo de um primeiro-ministro.

Concluído esse redesenho, que poderá consumir algum tempo, espera-se que o governo tenha organizado suas energias para atacar as questões impossíveis, quase todas tendo que ver com falta de dinheiro. Por isso mesmo, o centro de gravidade de todas é o orçamento.


Não é má notícia que as promessas de campanha tenham que se ajustar às realidades do orçamento público e à responsabilidade fiscal. Entretanto, não há como mudar o processo orçamentário nesse momento de aterrissagem. Não agora. A reforma do processo orçamentário deve ficar para depois, sempre se imaginando que nesse “depois” não existem as urgências do “hoje”, o que costuma não ser o caso.

Com isso, a conversa começa com o presidente da Comissão de Orçamento, e um assunto obrigatório será o das emendas do relator: a ideia de carimbar as emendas do relator de “orçamento secreto” deu muito certo para encurralar o governo Bolsonaro, mas e agora? Como desenhar emendas parlamentares obrigatórias não secretas e do relator com o intuito de arregimentar parlamentares para a base do governo sem parecer que é mais do mesmo?


No mérito, existem ao menos três bombas para incorporar no Orçamento: uma nova política de saláriomínimo, o novo bolsa família permanente e aumentado e o aumento da faixa de isenção na tabela do IR. Foram promessas muito claras do novo presidente, sobre as quais deve haver, agora, alguma deliberação sobre as fontes dos recursos.

O orçamento já parecia meio impossível antes dessas promessas. O único atenuante para isso é a observação segundo a qual o orçamento no próximo ano sempre parece irreal logo antes do início do exercício fiscal, quando algum milagre sempre acontece, às vezes mais de um.

Já se dá um nome para esse milagre – uma PEC de “Reconstrução Nacional” – mas nada se sabe sobre
como seria.


No assunto do imposto de renda, parece claro que a conversa vai começar onde parou a negociação
anterior sobre mudanças no IR conforme proposta de Paulo Guedes. No texto resultante dessas conversas, o reajuste da tabela foi tímido, e o maior “avanço” (ou retrocesso?) se deu no assunto da tributação de dividendos. Será difícil o novo governo não retomar essa conversa abraçando a tributação de dividendos e mais alguma coisa que eleve a progressividade do sistema. É preciso lembrar que Bolsonaro também queria reajustar a tabela progressiva e, ao final, não conseguiu. Soluções cosméticas são sempre bem-vindas, tendo em vista a resistência ao aumento de carga.

No assunto do salário-mínimo, o presidente criou um problema para si, mas resolveu ele mesmo, rapidamente, e o fez de forma reveladora, através do ex-governador Wellington Dias. Outras fórmulas de política social se desenvolveram no intervalo, incluindo aí o próprio crescimento de estatura dos programas de transferência direta, que se pretende amplificar, e cujo financiamento não será simples. Melhor não acordar um assunto difícil, para o qual não há solução boa. A política de salário-mínimo é sempre assunto contencioso pelos seus impactos sobre a Previdência Social e sobre as finanças de entes subnacionais, e qualquer que seja o aumento, é sempre pouco.

De fato, o salário mínimo não tem tido aumentos “reais” nos últimos anos, mas não é claro se o que foi feito não estaria de acordo com a regra fixada na Lei 12.382/2011, e estendida pela Lei 13.152/2017 de Dilma Rousseff, pela qual o reajuste seria dado por dois componentes: a variação do INPC nos 12 meses anteriores ao reajuste e “a título de aumento real”, ou algo como o aumento de produtividade, dada pela taxa de crescimento real do PIB no ano retrasado ao da competência do reajuste. Porém, a regra desconsidera a ocorrência de taxas negativas de crescimento para o PIB, como verificado
em 2015 (-3,55%), 2016 (-3,28%), mercê da Nova Matriz e 2020 (-3,88%), em razão da pandemia.

Não é irrazoável que não tenha havido aumento real do salário-mínimo nos últimos anos porque a produtividade não cresceu. O que dizem outros indicadores mais elaborados de produtividade?

O fato é que o presidente recuou, e fez com desembaraço, tão rápido que não deu para ver que era um erro sendo corrigido.

Tudo considerado, seria ótimo que o novo governo tivesse uma folga para uns 150 ou 200 bilhões de gasto adicional no ano que vem. Durante a campanha era, inclusive, uma fala dos representantes do PT que visitavam influenciadores do mercado financeiro: o presidente é favor da responsabilidade fiscal, mas queria uma dotação inicial para cumprir suas promessas de campanha.


É como na imortal frase de Santo Agostinho: “Deus, daime a castidade, mas não agora”1

O orçamento de 2023 será o grande teste inicial para o novo governo na área econômica, o primeiro movimento de um novo contrato social para esta nova administração.

Por fim, resta observar que os assuntos referentes às privatizações e às reformas esfriam. Não se fala em desfazer operações feitas na administração que vai terminando, seria muito esforço para pouco ou nenhum ganho. No assunto referente a preços de combustíveis, e tarifas públicas em geral, o próprio mercado se encarregou de dar seu prognóstico, rebaixando drasticamente as ações da Petrobras.

1.G. H. B. Franco e F. Giambiagi “Antologia da maldade: um dicionário de citações, associações ilícitas e ligações perigosas”. Rio de Janeiro, Editora
Zahar, 2015, pág.19.


Gustavo Franco, Senior Advisor da Rio Bravo.

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Brasil 2023: A hora e vez das políticas públicas

Fator determinante para a gestão em diferentes esferas do poder, as políticas públicas são muitas vezes defendidas pelas lideranças partidárias e pela imprensa como um “ativo” para a governança, mas a sociedade civil raramente tem oportunidade de conhecer em detalhes os elementos norteadores desse tipo de agenda.

O tema é importante porque, uma vez adotadas, essas medidas têm força para impactar a vida de milhões de pessoas, promovendo melhoria da qualidade de vida da população. Em contrapartida, se mal formuladas, podem não apenas afetar a administração de um governante, como, também, minar a credibilidade dos gestores.

No último episódio da temporada “Brasil, 2023” do Videocast Rio Bravo, buscamos entender as características elementares da criação e da implementação das políticas públicas e quais os pontos em disputa na hora e vez que essas agendas são implementadas.