No Brasil, a ascensão dos evangélicos é um fenômeno que desafia jornalistas, intelectuais e pesquisadores. Em que pese o esforço recente para tentar capturar a intenção de voto desse grupo, tendo em vista as eleições de 2022, a impressão que se tem é a de que falta uma leitura aprofundada acerca das características fundamentais que mobilizam a imaginação dos evangélicos no país. No ano passado, um livro veio ocupar esse espaço. Em “O povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam”, o autor Juliano Spyer argumenta que o preconceito que muitos brasileiros escolarizados expressam contra o cristianismo evangélico reflete o preconceito contra pobres que não se vitimam e buscam sua inclusão social via educação e consumo.
Para falar a respeito deste tema, Juliano Spyer é o penúltimo convidado da temporada 2021 do Podcast Rio Bravo.
Por 18 meses, Juliano Spyer viveu em um bairro popular da periferia de Salvador. O livro, portanto, é fruto dessa experiência, conforme o autor revela no trecho a seguir: “Tive a oportunidade de conviver com algumas pessoas das igrejas evangélicas e descobri o quanto minha perspectiva, apesar da minha formação de historiador, era pequena em relação a esse grupo. Eu não tinha em vista escrever esse livro. Fui para campo para estudar internet, e esse livro nasce da descoberta não dos evangélicos, mas da ignorância de quem vive nos circuitos mais afluentes da sociedade e que, apesar da sua grande escolaridade, não tem acesso a esse tema”.
A propósito do fato de que o impressionante crescimento dos evangélicos no país nas últimas décadas não ser devidamente discutido junto à opinião pública mais informada, Juliano Spyer observa o que vai a seguir: “Quando ignoramos esse grupo, nós damos impressão de ignorar as camadas populares brasileiras”. A observação de Spyer alude principalmente ao fato de pesquisadores lançarem olhar mais atento, e de forma justa, a determinadas comunidades (como a dos Quilombolas, dos Ribeirinhos, dos Indígenas) ao mesmo tempo em que tratam com desdém o pobre comum (o vigia, o cozinheiro, a faxineira). “Quando essas pessoas estão relativamente distantes, são vistas até com certa boa vontade e interesse, mas quando se aproximam geralmente são patologizados. E o contexto da falta de entendimento dos evangélicos vem dessa perspectiva”, analisa.
Adiante, nosso entrevistado faz uma leitura arguta a respeito da diferença entre o protestante histórico e o protestante pentecostal. “As igrejas consideradas protestantes históricas são essas que surgiram nos primeiros séculos posteriores à reforma protestante (presbiterianos, batistas, metodistas, calvinistas, luteranos). No século XIX, surgem duas igrejas importantes, que têm grandes contingentes no mundo e que são, de certa forma, híbridas: as Testemunhas de Jeová e os Adventistas. E a partir do século XX há uma fusão de tradições por meio de um missionário afrodescendente, que começa a pregar em casas. E um grupo que ficou interessado na pregação dele acaba ocupando uma igreja na rua Azusa (na cidade de Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos). É uma pregação que tem algumas características: o retorno à simplicidade; uma rejeição à certa intelectualidade em nome de uma religiosidade mais quente; e uma disciplina moral quase militarizada em relação aos preceitos bíblicos”.
Ao comentar a importância da disciplina para os evangélicos, Spyer observa que se trata de um elemento fundamental, haja vista a vulnerabilidade social de parte considerável desse grupo. “A disciplina, de fato, ajuda num espaço muito convulsionado, muito vulnerável, onde você está exposto, como um brasileiro que não é branco, a todos os tipos de tensão. A disciplina, portanto, auxilia a se manter em pé nesse ambiente de precariedade”. O entrevistado cita, ainda, o fator da ajuda mútua, algo que não é exclusivo dos evangélicos. Nesse caso, se alguém perde o emprego, sempre existe quem possa apoiar, com uma cesta básica ou com indicação para um trabalho, por exemplo.
Além disso, Spyer observa que a igreja funciona também como um espaço para dignificação de quem estava excluído. Em outras palavras, o cristianismo evangélico opera no sentido de trazer pessoas outrora marginalizadas para o convívio social, como que acolhendo e dizendo que elas não são piores ou melhores do que ninguém naquele contexto.
Para as eleições de 2022, existe um sentimento de preocupação dos formadores de opinião quanto ao voto dos evangélicos. Para Spyer, embora o apoio ao presidente Bolsonaro custe caro para esse grupo (entre outros pontos, porque é um presidente que defende o acesso às armas de fogo), o atual mandatário ainda é o único que fala de forma aberta em favor da família tradicional. O autor de “O Povo de Deus” ressalta que o presidente é: “Contra a legalização das drogas, contra o aborto e se coloca também contra o casamento homoafetivo. Por isso, o presidente Bolsonaro navega nesse espaço de forma mais confortável do que os outros. Além disso, ele cumpriu uma promessa de campanha, uma vez que indicou um ministro evangélico ao Supremo Tribunal Federal.”
Para ouvir a íntegra da entrevista de Juliano Spyer ao Podcast Rio Bravo, basta acessar o link acima.
Fabio Silvestre Cardoso é jornalista e produtor do Podcast Rio Bravo.