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“Outubro Vermelho” por Gustavo Franco

A entrevista concedida pelo presidente da República – amplamente publicada e repercutida nos últimos dias, apelidado de outubro vermelho, se tratando de assuntos fiscais – foi um pequeno desastre para o ministro da Fazenda.

Nada é pior que o “fogo amigo” vindo do Palácio, em “on”: o presidente questionando a política econômica publicamente. O grande “plano de governo” na economia foi o arcabouço e seus números: se isso não é importante, o que sobra?

Outubro vermelho e suas crises

No passado, nas incontáveis ocasiões nas quais esse enredo se repetiu, o rito foi o mesmo: o ministro vai ao presidente da República, diz que seu cargo está à disposição, pois pertence ao mandatário, e eles combinam alguma encenação de apoio e confiança, a fim de evitar um pedido de demissão.

O registro é que Haddad sentiu o golpe – e se possui sete vidas, ou umas três ou quatro, como se diz da média dos ministros da Fazenda, uma já se foi. Resta ver como vai resistir e seguir adiante. Será preciso acompanhar.

Não é incomum que o chefe do governo se entregue a exageros verbais com vistas a acalmar setores mais radicais do partido, ou de sua coalizão. Sobretudo esse chefe de governo.

Entretanto, Brasília aprendeu a discernir excessos brancos, de pura retórica, daqueles que são declarações sinceras, fora da caixa e da rotina, e que revelam nuances de divergências materiais que a comunicação oficial se empenha em ocultar.

A manifestação de Lula sobre as metas fiscais de Haddad foi comparada ao famoso desabafo de Dilma Rousseff, “gasto é vida”, a fala que serviu como marco definidor da Nova Matriz, de triste memória.

A ex-presidente está convenientemente bem longe, em Shanghai, alojada e exilada na presidência do NDB (New Development Bank), o banco dos BRICS. Mas suas ideias parecem mais vivas do que se poderia imaginar.

Com isso, Fernando Haddad termina o mês menor do que começou, o que se da o nome de outubro vermelho para o ministro.

O terceiro mandato e suas dificuldades

Somada às declarações sobre o Oriente Médio, as falas do presidente parecem destinadas a solapar a reputação de encantador de serpentes que Lula cultivou ao longo de sua carreira.

Tudo é mais difícil nessa sua terceira presidência, na economia como em Brasília, e a reedição de velhos programas, bem como de velhas receitas para o entrosamento com o Legislativo, e mesmo das falas intuitivas e improvisos do mandatário, não têm produzido bons resultados.

O outubro vermelho trouxe mais que uma fala inadequada do presidente. O encontro anual do FMI e Banco Mundial no Marrocos, um bom termômetro para as aflições econômicas globais, teria sido monótono, não fosse uma grande sombra pairando sobre todos: o conflito no Oriente Médio.

Mesmo que as consequências do conflito no terreno financeiro, ou sobre o preço do petróleo, ainda sejam indefinidas, como o próprio desenrolar e o alcance do conflito, o assunto possui gigantesco potencial desestabilizador.

Brasil: o país das reformas

No terreno legislativo, o outubro vermelho teve ao menos dois destaques, ambos tributários: a reforma (constitucional) nos impostos sobre o consumo (a dita “reforma tributária”) tramitando no Senado, e os avanços na Câmara do PL sobre impostos sobre fundos fechados e recursos offshore.

Os andamentos da reforma tributária no Senado não surpreenderam. O relatório do senador Eduardo Braga (de 25/10, apresentado na Comissão de Constituição e Justiça) chamou a atenção pela ampliação supostamente irrazoável de exceções e do período de transição.

O relatório produziu críticas contundentes, como a de Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda de São Paulo e ex-diretor executivo do IFI (Instituição Fiscal Independente). Para Salto, o texto ficou tão complexo que talvez não valha mais a pena fazer (“Melhor não parir o mostrengo tributário”, O Estado de S. Paulo, 26/10/2023).

A reforma dos impostos de consumo já tinha fracassado várias vezes no passado, desde quando foi primeiro aventada nos anos 1990. A arquitetura melhorou, mas as dificuldades continuam grandes.

O ministro e o governo talvez tenham se iludido que o assunto estava maduro, e assim subestimado os recursos políticos necessários para uma tramitação tranquila.

A pauta do ambiente de negócios, que sempre foi a razão de ser dessa e de outras reformas, não é bem a cara desse governo. O problema será o de evitar o desgaste, afastando-se do tema, o que parece impensável na presença do ministro Haddad.

Xadrez econômico: área tributária

Também no terreno tributário, e mais diretamente na direção de se obter mais recursos para fechar as contas no contexto do arcabouço, veio a aprovação, na Câmara, do Projeto de Lei (PL 4.173), que trata da tributação de offshores, de investimentos no exterior e de fundos de investimentos fechados.

Não há tanto dinheiro em jogo, mas o ministro transformou o assunto numa campanha contra os ditos “super ricos”, e com isso o assunto ganhou importância como um tema de marketing político em desproporção com as receitas que de fato produziria.

O projeto provocou, portanto, sobressalto e desconfiança, sem falar em que pode “sair pela culatra”, por exemplo, se motivar a judicialização da temas aparentemente pacificados, como o “come-cotas”. Conforme lembrado por Marcos Lisboa e Vanessa Canado, o expediente serve para tributar ganhos que ainda não aconteceram, e podem não acontecer.

A Receita se ressente do uso que os contribuintes fazem das regras de “diferimento”, mas o fato é que o fato gerador (a renda) precisa ocorrer, tanto em fundos fechados quanto em offshores. Sem fato gerador não há imposto. Na verdade, sem ganhos já realizados, o que se tem é uma tributação sobre o patrimônio, não exatamente a prevista. E se alguém suscitar a constitucionalidade do “come-cotas”, que parece pacificado na sua incidência sobre fundos de investimento já durante alguns anos?

O uso da ideologia para definir um assunto

O fato é que o governo, e mais especificamente o ministro Haddad, politizou o assunto ao definir o PL como a “taxação dos super ricos”, assunto do qual ninguém de bom senso ousaria se opor. Mais ou menos como se fala sobre o imposto sobre grandes fortunas, que nenhum governo teve a coragem ou enxergou méritos objetivos para implementar. Tampouco este.

Por que o ministro não propõe taxar as grandes fortunas – que é, na prática, o que diz estar fazendo – em vez de mexer nas regras de investimento no mercado financeiro que geram muita espuma e pouca receita? Se é para tributar os super ricos pelo que de fato são, segundo algum critério objetivo que seria preciso definir, por que não o fazer de forma direta?

E a inflação como está?

A inflação está bem-comportada, ao menos por ora, com as expectativas sugerindo que o governo vai mirar (ou deixar-se limitar a) o teto do intervalo de tolerância, tal como se observou na época de Alexandre Tombini.

Para 2023, que já está em grande medida “resolvido”, a meta é 3,25%, e o teto de tolerância é 4,75% (3,25% + 1,50%) e mediana das expectativas (FOCUS de 30/10) para o IPCA está em 4,63% com leve oscilação para baixo. Para 2024, todavia, meta e teto são de 3,0% e 4,5%, mas a mediana das expectativas está em 3,90% com tendência de alta.

Não se espera que o COPOM altere a trajetória de queda de juros já sobre a mesa – com queda de 0,5% – nem o problema que vai haver em meados de 2024 quando começar o debate sobre a “taxa neutra” e também sobre o substituto para Roberto Campos Neto.

Dois nomes foram anunciados para substituir os dirigentes do Banco Central cujo mandato se encerra no final do ano: Paulo Picchetti, para substituir Fernanda Guardado, nos Assuntos Internacionais; e Rodrigo Teixeira, para substituir Marcelo Moura na Diretoria de Cidadania. Picchetti é professor da FGV-SP e Teixeira é funcionário de carreira.  

É um enorme progresso que o inflacionismo esteja mitigado e que se limite a usar “todo o espaço” que lhe permite o sistema de metas sem subvertê-lo. Não é o ideal, mas é a zaga aguentando a pressão do adversário, sem ceder espaço.

As instituições funcionam, ao menos na defesa da moeda

Um outro bom exemplo vindo de Brasília, e especificamente do STF, é a decisão que reafirmou a constitucionalidade da (retomada de imóvel no regime de) alienação fiduciária. A Lei 9.547, de 1997, criou o SFI (Sistema Financeiro Imobiliário) e assim deu efetividade a conceitos, entre outros, como o patrimônio de afetação, a segregação fiduciária de um empreendimento, bases para os CRIs (Certificados de Recebíveis Imobiliários).

Essa é uma lei que demorou a “pegar”, pois era preciso que os tribunais “reconhecessem” seus dispositivos, o que levou muitos anos. Ainda não temos um mercado de “mortgages” como nos EUA, mas o crédito imobiliário livre vai crescendo, bem como as securitizações e estruturas financeiras que apoiam o desenvolvimento imobiliário.

Foram duas décadas até o assunto chegar ao STF, já muito pacificado, mas nem por isso deixou de haver votos contrários, ou seja, pela inconstitucionalidade de retomada de imóvel dado em alienação fiduciária (ministros Edson Fachin e Carmen Lúcia). Surpreende, também, é que o noticiário sobre a decisão tenha sido tão “torto”, enfatizando o poder dos bancos para retirar a moradia das pessoas.  


[1] “O erro do ‘come cotas’” Brazil Journal de 25/10/2023.

Gustavo Franco – Senior Advisor da Rio Bravo

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O discurso de Lula na 78ª Assembleia-Geral da ONU: entre o esperado e o fabricado

Comentários acerca dos pontos controversos do discurso do presidente da República na 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas.

Paulo Roberto de Almeida

O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura dos debates na 78ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Este é o 9º que ele pronuncia, depois dos oito anteriores já feitos em seus dois primeiros mandatos, entre 2003 e 2010.

Não difere muito do tom reivindicativo e até pedagógico (ensinando ao mundo como ele poderia se comportar melhor) daqueles precedentes. Ou seja, a não ser pelo fato deste mais recente, em 19 de setembro de 2023, revelar mais abertamente algumas das opções políticas já desveladas por Lula em diversas ocasiões nos últimos nove meses.

Vamos evidenciar apenas alguns aspectos desse pronunciamento, dadas a sua extensão (cerca de seis páginas). E as suas pretensões abrangentes, de Norte a Sul, de Leste a Oeste.

Semelhanças e o padrão democrata

Cabe, antes de mais nada, registrar que o texto possui algumas das características típicas de todos os seus discursos num ambiente diplomático. Ou seja, uma estrutura híbrida e os seus componentes bipolares: de um lado, os elementos habituais de um discurso feito por burocratas do Itamaraty.

Basicamente um estilo mais polido, e de outro lado, os componentes partidários e ideológicos que são mais frequentemente enxertados no Palácio do Planalto.

Antes, nos dois mandatos anteriores, e até no 1,5 mandato de Dilma, essa tarefa estava ao encargo do apparatchik do partido encarregado dos assuntos internacionais. Mais conhecido no Itamaraty como “chanceler para a América do Sul, agora é o próprio ex-chanceler desempenha a função, provavelmente ajudado por alguns petistas.

Esse primeiro lado, o diplomatês habitual, é o esperado nos discursos, com a sucessão de invectivas sobre as desigualdades sociais, étnicas e outras. Além disso, o pouco comprometimento dos países ricos em atender aos requerimentos desejados pela cooperação para o desenvolvimento dos países mais pobres.

Assim, acrescido das questões mais presentes nas últimas décadas, como:

  • Sustentabilidade ambiental;
  • transição energética;
  • ameaças à paz internacional derivadas das armas atômicas;
  • outras questões desse rol.

Não há muito o que comentar nesse particular, pois é o que vêm fazendo todos os chanceleres, desde muitas décadas no passado. E o que farão também os seus sucessores, no futuro previsível.

Vamos deixar de lado, então, a questão da fome no mundo, a desigualdade na distribuição de renda ou até a defesa da democracia. Tudo isso já era esperado e habitual.

Novidades presentes em um discurso moderno e diferente

O mais interessante, portanto, seria comentar o que há de novidade no discurso deste ano. E aí é que entram as tais novidades políticas, ideológicas e partidárias, que parecem ter se acentuado desde algum tempo.

Talvez coincidente com a volta de uma nova Guerra Fria, desta vez não mais geopolítica, como no fim do século XX, e mais econômica/tecnológica. Desde a ascensão irresistível da China à preeminência comercial planetária.

A principal é uma crítica à própria ONU e suas instituições subordinadas, o que não era frequente nos discursos tradicionais preparados pelo Itamaraty.

Lula disse que “Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução”. O exemplo indicado é o diferencial de ajuda dado pelo FMI aos países europeus. Segundo ele 160 bilhões de dólares, e aquele fornecido aos países africanos, no fim, apenas 34 bilhões de dólares.

Se considerarmos o PIB conjunto da Europa e África, assim como a amplitude dos desequilíbrios que possam ter sido compensados pela ajuda do FMI. Constata-se que os países africanos receberam muito mais, pelo porte das economias e pela renda per capita. Não se vê, por outro lado, onde é que as instituições de Bretton Woods e a OCDE fizeram a “apologia do Estado mínimo”. Quando esses órgãos são o mais próximo que se possa ter, nas economias de mercado, de planejamento econômico e de intervencionismo na regulação macroeconômica e setorial.

Divergências econômicas

Fica também difícil de constatar onde o “neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias”. Sendo que seu legado seria “uma massa de deserdados e excluídos”.

Os dois maiores países antes guiados pelo socialismo ou pela ação diretiva do Estado, China e Índia, são justamente aqueles que retiraram centenas de milhões de miseráveis de uma pobreza ancestral graças ao fato de terem abandonado o dirigismo anterior e aderido a versões mais abertas de uma economia de mercado, inclusive por uma inserção deliberada em todos os tipos de transações globalizadas.

Mas o argumento mais surpreendente se refere à guerra na Ucrânia: segundo Lula, ela “escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU.” Como coletiva? A guerra de agressão foi perpetrada por um violador claramente identificado coletivamente, condenado em resoluções da própria AGNU, mas que NUNCA é referido por Lula, o que se parece bem mais com uma espécie de miopia individual, ou coletiva, dos que escreveram o discurso para o presidente.

Lula e o seu discurso com um teor crítico e reflexivo

Lula também é crítico de “toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência”, o que é desmentido pela sua exaltação da ampliação do Brics – descrito por ele como “uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes” – e por seus recorrentes apelos à construção de uma “nova ordem global”, de sabor, teor e finalidades claramente antiocidentais, dadas seus reiteradas críticas aos países ocidentais que “estão sustentando a guerra na Ucrânia pelo fornecimento de armas”, o que é, no mínimo, um convite ao desaparecimento do país invadido pela força das tropas invasoras.

O crescimento do Brics, decidido na cúpula de Joanesburgo – mais 120% de membros, mais uma vez pelas mãos da China, como já tinha sido o caso da África do Sul – fortalece, segundo Lula, “a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século 21”.

O sentido dessa ampliação aponta claramente para uma oposição ao “neoliberalismo falido”, que, na visão do presidente, foi substituído por “um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário”. Algum jornalista talvez devesse perguntar a Lula o que ele está achando do governo de Putin, que tem feito leis de nítido teor conservador, homofóbico e autoritário.

O único jornalista do qual ele se lembrou foi Julian Assange: Lula não deve ter sido informado da situação do jornalista russo Vladimir Kara-Murza, condenado por Putin a 25 anos de cadeia supostamente por “espalhar desinformação”.

Os antigos discursos puramente diplomáticos de Lula eram bem mais coerentes com a democracia e os direitos humanos, que Lula diz defender, e bem menos divergentes com uma realidade fabricada por seus assessores puramente partidários para este discurso de 2023.

Paulo Roberto de Almeida é diplomata, professor e escritor


Nota do Editor: Paulo Roberto de Almeida participou, recentemente, do terceiro episódio da atual série de Videocasts da Rio Bravo, “As Instituições Estão Funcionando?” Confira a íntegra da entrevista a partir do link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=1JJC4Q9eB7E

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