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O mês de Janeiro 2024 – O ano que ainda não começou

No mês do Carnaval, o noticiário econômico costuma ser magro, sem maiores novidades.

O mês de janeiro costuma ser magro em notícias na economia, ressalvados os anos de mudança de governo, como foi o caso de 2023, ano especialmente complexo nesse quesito.

Dessa vez, contudo, a monotonia é absoluta. O recesso parlamentar não será atrapalhado por notícia velha ou por medidas pirotécnicas.

Mais ou menos nessas duas categorias, se encaixam:

  • a Medida Provisória 1.202/2023 de reoneração da folha de pagamentos, assunto considerado já resolvido pelo CongressoG e no qual a insistência do governo parece um gesto teatral com o fito de acalmar suas tropas;
  • e a dita nova política industrial, também dando a impressão de ser destinada a agradar o acampamento de patriotas aglutinados ao redor do BNDES.

Não foi simples para a imprensa interromper as férias de algumas lideranças parlamentares para obter indicações de contrariedade com o Executivo com a MP 1202.

Parecia meio óbvia a irritação e a mensagem de que o assunto não vai a lugar algum. O tema já foi objeto de derrubada de veto presidencial, a fixação no assunto é mais teatral do que real.  

Nova Indústria Brasil

O programa atingiu seu objetivo de ocupar boa parte do noticiário ao longo do mês, uma demonstração eloquente e inequívoca da profunda falta de assunto nesse mês de janeiro e começo de 2024. Há pouquíssima novidade no programa, dito de 300 bilhões, mas que, na sua quase totalidade, diz respeito a recursos que já seriam desembolsados pelo BNDES e pela FINEP.

Grosso modo, como 90% do programa já ia acontecer e outros 10% era uma coleção de pequenas novidades não muito polêmicas, na média, o Nova Indústria Brasil é simplesmente pouco relevante. A dúvida é sobre o imenso destaque dado ao anúncio pela comunicação governamental.

Parece muito clara a intenção de prestigiar Aloisio Mercadante e Geraldo Alckimin, bem como os patriotas ali acantonados esperando um chamamento que provavelmente não ocorrerá. A economia política interna do PT é reconhecidamente complexa, de tal sorte que esses gestos cenográficos têm mais importância do que se supõe.

 A ideia de “neoindustrialização”, o que quer que seja, conta com defensores aguerridos tanto na administração pública quanto no setor privado. Esse tipo de anúncio oferece um palanque e um momento de glória a esse grupo, cujo apogeu se deu com as falas de Mercadante e sua repercussão nas redes sociais.

A surpresa do grupo adveio da péssima repercussão do anúncio para o público em geral, especialmente no jornalismo econômico. É mais uma área em que tudo se transformou, aos olhos dos governistas, relativamente à última vez que o PT esteve no poder. As críticas vieram não apenas do terreno fiscal (de onde vem esse dinheiro?) como também sobre a natureza do programa (por que desse jeito e para esses fins?).

O ministro Mercadante elevou o tom em suas respostas, não saiu bem na foto e mais longe acabou ficando de Brasília.

Concretamente, não há medidas realmente importantes, nem grandes despesas. As confrontações ideológicas e debates estão todas no terreno da retórica e acerca do que o ministro falou sobre a indústria naval, entre outras minudências. Nada realmente relevante a interferir com os andamentos da macroeconomia.

Na verdade, é menos um programa que um estudo de intuito marqueteiro sobre o que já se faz em causas nobres e temas da moda. Tudo, no novo programa, serve à produtividade, à inovação e à sustentabilidade, e os seus seis eixos vão um tanto além da indústria: (i) cadeias agro; (ii) saúde (iii) cidades; (iv) transformação digital; (v) descarbonização e (vi) defesa.

Como se opor a algo tão bem-intencionado?

Houve muita solenidade no anúncio, como se fora algo realmente importante, apenas com a ressalva de que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não estava presente, tampouco pronunciou qualquer palavra em apoio ao colega presidente do BNDES.

Não é que o programa seja irrelevante, tais desígnios são nobres demais para essa qualificação. O adjetivo talvez mais próprio é “inofensivo” e seu propósito é assegurar a paz social dentro do PT, nada além.

Balanços de fim de ano

O mês de janeiro costuma ser pobre também na apresentação de dados da economia, uma vez que boa parte das divulgações sobre o ano fechado que acabou de terminar é antecipada e discutida em dezembro, com os balanços de fim de ano.

A exceção a essa regra foi a publicação dos dados sobre o déficit primário para 2023, notícia meio velha, já que não houve bem uma surpresa: 230 bilhões (2,1% do PIB), divulgado junto com a observação pela qual cerca de 90 bilhões dizem respeito ao “meteoro” dos precatórios, conforme a expressão já consagrada do ex-ministro Paulo Guedes.

O número não é bom, e a forma do anúncio foi sestrosa, buscando navegar na ideia, popular em Brasília, que precatório é uma despesa “de segunda classe”. Ou ao menos, uma despesa que não pode ser alterada pelas ações da equipe ora no exercício dos cargos da economia. É como tentar argumentar que uma parte importante do resultado tem a ver com os governos do passado, o que é verdade, mas não é tão importante.

Entretanto, muita gente entende que precatório é como dívida pública, sobre a qual não poderia nem deveria haver contingenciamento, atraso, reestruturação, essas coisas. Não foi o que ocorreu, é verdade. O “calote do calote” foi, de fato, coisa da administração anterior: através das emendas 113 e 114 de 2021. Em 2024, o ministro Haddad parecia apenas preocupado em livrar-se da responsabilidade pelo estouro nas contas.

O tom do anúncio revelou nuances importantes do panorama brasiliense. Haddad se acomoda mais fortemente na postura fiscalista, o Antonio Pallocci da terceira presidência Lula, posição para qual foi empurrado pelo próprio PT, em virtude da sua habitual combatividade, bem como pela extroversão de Mercadante e seu grupo.

Pode haver, inclusive, alguma flexibilização da meta fiscal de zerar o primário para 2024, mas isso não será visto como falta de empenho do ministro no tema da disciplina fiscal.

Na verdade, Haddad pretende introduzir medidas tributárias pesadas ao longo do ano, usando a expressão (consagrada em 2023) ‘reforma tributária’ para impulsionar o seu programa de tributação progressiva da renda e do patrimônio.

No decorrer do ano de 2024, o governo terá de decidir se abraça mais explicitamente um programa de aumento de impostos, aí incluindo a tributação de dividendos, novas regras para a JCP, imposto dobre a renda, herança e mesmo grandes fortunas.

O destino do ministro fica associado a um aumento de impostos, o que acaba gerando certa ambiguidade em seus apoios empresariais. O ideal seria vê-lo comprometido com alguma redução na despesa, o que talvez se observe no decorrer de 2024.

Política monetária: só em março

A reunião do COPOM se deu no mês de janeiro (31), com a queda na SELIC para 11,25%, sem qualquer resquício de surpresa. A política monetária voltará a ser assunto apenas em março e, mesmo assim, não se espera nenhuma novidade até meados do ano, com o gradual aumento do debate sobre os fatores que podem interferir no ritmo da queda de juros.

Por ora, após o mês de janeiro, nada indica que esse ritmo vá se alterar. O assunto da “taxa neutra”, ou da taxa terminal desse ciclo de baixa, ficará provavelmente para o segundo semestre. Teremos muitas avaliações pelas quais o IPCA, ou algum indicador de atividade, surpreendeu para cima ou para baixo, com implicações sobre o que o COPOM poderá fazer. Mas o debate sobre a taxa terminal será mais adiante, junto com a discussão sobre a escolha do sucessor, ou a antes impensável recondução, de Roberto Campos Neto no Banco Central.

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Retrospectiva 2023

2023 não começou muito calmo. Costuma ser assim quando a passagem de ano traz uma mudança de governo. Dessa vez foi bem complexa.

Em janeiro, no restrito plano da economia 2023, a dificuldade começava pela longa e elaborada costura para definir o novo ministério, urdida simultaneamente à aprovação de uma Emenda Constitucional de índole orçamentária (conhecida como “a PEC de Transição”), passando pelas arruaças golpistas de 8 de janeiro, o anúncio das “inconsistências” nas Americanas no dia 11 e culminando com o primeiro “pacote econômico” do ministro Fernando Haddad no dia 12.

A importância da economia 2023 para o novo governo se revela prontamente no novo desenho para o ministério, em cujo centro está o desfazimento do antigo ministério da Economia. O ministério antes ocupado por Paulo Guedes seria decomposto em seis outros: Trabalho (Luiz Marinho, da CUT), Previdência (Carlos Lupi, do PDT), Indústria e Comércio (Geraldo Alckmin, vice-presidente), Gestão (Ester Dweck, professora da UFRJ), Planejamento e Orçamento (Simone Tebet, senadora do PMDB) e Fazenda (Fernando Haddad).

Em virtude desse desenho, que é parecido com o de 1994, teve que ser reconstruído (através da Medida Provisória de n. 1.158) o CMN (Conselho Monetário Nacional), bem como de sua Comissão Técnica da Moeda e do Crédito (COMOC). O perigo era alguma alteração no COPOM e sua disciplina, ou no equilíbrio de forças da governança da moeda estabelecida em 1994.

Felizmente, o redesenho não trouxe nenhuma inovação, inclusive e especialmente na delicada dinâmica do sistema de metas para a inflação. O novo CMN, reassumindo o desenho com três membros, aparece publicamente pela primeira vez no anúncio do pacote do dia 12 de janeiro, o primeiro do ministro Haddad, com jeito de governo de “coalizão”: o PT (Haddad), a 3ª via (Tebet) e o Banco Central do Brasil (Campos Neto).

O presidente da República demorou a sair do palanque, especialmente pela sua insistência em tratar do Banco Central e dos juros. Foi a primeira eleição em que o BCB estava no regime da Lei Complementar 179, de 2021, o primeiro e dificílimo teste do novo modelo institucional. Nesse sistema, os dirigentes do BCB, incluído o seu presidente, tinham mandatos a cumprir e não eram mais de livre nomeação do presidente eleito. No tocante a seus dirigentes, o BCB passava a ter regras semelhantes às de outras agências reguladoras, vale dizer, dirigentes com mandatos não coincidentes com os do presidente da República.

A influência do novo arranjo sobre as decisões de política monetária é um tópico em aberto. Teria o BCB reduzido demasiadamente a SELIC no terço final da pandemia? Teria elevado demais logo a seguir, durante o período eleitoral? Teria mantido a SELIC muito alta muito tempo?

Mesmo sem uma resposta muito clara para essas perguntas, a sensação é de que foi bem-sucedida a alteração institucional elevando a autonomia do BCB. O país não experimentou instabilidade macroeconômica ou financeira durante a mais contenciosa e polarizada de todas as eleições presidenciais desde 1989.

A dinâmica decisória na área econômica seria reveladora, sobretudo tendo em vista que a economia 2023 não foi um assunto muito debatido nessas eleições. Quais eram os reais planos econômicos do presidente eleito?

Em Brasília, o que se ouvia era que o presidente da República ia mandar na Economia 2023 porque dois ministros seus são suficientes para formar uma maioria no CMN. No entanto, esse colegiado sempre decide por consenso, de modo que não teve voto divergente, nem voto “ad referendum” desde a sua reforma em 1994.

Como iria funcionar esse novo CMN?

Tudo parecia muito novo e experimental na área econômica, uma vez que os dois ministros a ocupar as pastas “protagonistas”, Fazenda e Planejamento, não eram do ramo e sequer imaginavam que iam estar nessas posições 30 dias antes de suas nomeações.

Impossível afastar a sensação de improviso, um tanto dissimulada pela diligência de Haddad e sua vontade de acertar.

Essa discussão sobre influência política na moeda, ou sobre “bancadas” e votos divergentes, não prospera com respeito ao CMN, mas vai se transportar ao longo do ano para o COPOM, um colegiado de nove membros e que, ao final de 2023, já teria quatro novos integrantes escolhidos pela atual administração. Mas a liderança do BCB na condução da política monetária, vale dizer, a integridade do sistema de metas, não foi alterada, a despeito do mau humor presidencial quanto aos juros e quanto à governança da moeda.

O mérito pela preservação do sistema é parte conceitual, parte pessoal.

O sistema de metas já conta vários anos de bons serviços ao país. Seria uma tolice mudar. O conceito estava maduro, e assim permanece. Mas o mérito pessoal cabe ao presidente do BCB, Roberto Campos Neto, que teve muita paciência, atributo essencial para o primeiro presidente do BCB com mandato convivendo com um presidente da República ferozmente adversário daquele que o nomeou e com certa má vontade relativamente à delicada construção institucional que veio a herdar.

Desancar os juros altos é normal e aceitável, para qualquer político, desde que sem exageros. Todos os presidentes sempre reclamaram da taxa de juros. Como também os senadores, inclusive da situação. Mais ou menos como os exportadores reclamam da taxa de câmbio. Quando podia demitir o presidente do BCB “ad nutum” o presidente da República se queixava dos juros em “off”. Fazê-lo abertamente convidava a pergunta sobre por que não demitir. Quando perdeu esse poder, o presidente ganhou o privilégio de reclamar publicamente, ainda que sem consequência. Parece que Lula se sente melhor nessa nova situação.

Provocar o mercado financeiro

São comuns as diferenças de opinião sobre o nível adequado de juros diante de variações conjunturais na economia 2023. Entretanto, as falas do presidente sobre esse assunto, sobretudo no primeiro semestre do ano, deixaram atrás de si uma sensação ruim, mesmo sem ter nenhum efeito prático, senão o de provocar desnecessariamente o mercado financeiro, que parecia disposto a abraçar a nova administração desde o primeiro dia.

Essas tensões escalaram em março, quando Lula se referiu a Roberto Campos Neto como “aquele cidadão”. Era grotesco, ainda que não inconstitucional, o presidente da República ralhar em público com o presidente do BCB, com isso se equiparando ao presidente anterior em suas diatribes contra os conselheiros da ANVISA. Era uma repetição da implicância com o conhecimento especializado, agora em economia.

Se a ideia era “pazuelizar” o BCB, esta seria a missão dos primeiros dirigentes indicados por Lula para o BCB, sobretudo Gabriel Galípolo, que vinha ocupando a Secretaria Executiva do ministério da Fazenda, e foi o nome escolhido por Haddad (talvez para evitar um nome do PT). Mas não foi o que se observou. Na primeira reunião do COPOM de que participou, a 256ª, Galípolo votou com Roberto Campos Neto por uma redução da SELIC de meio ponto. O placar foi de 5×4 para a posição vencedora (queda de meio ponto) contra a queda de 0,25%. Foi o primeiro 5 a 4 da história do COPOM.

Nas reuniões posteriores do COPOM, as decisões foram de consenso na redução de 0,5% na SELIC, de modo a encerrar o ano em 11,75%. Galípolo não foi voto divergente em nenhuma dessas reuniões e nem foi mais uma presença na imprensa e nas redes sociais, tampouco o “contraponto” à política monetária. É discutível se devem existir “bancadas” no COPOM, inclusive de natureza partidária, uma “vermelha” (lulista, petista ou abertamente heterodoxa) e outra “muito durona”, como definiria o ministro Haddad em dezembro.

Seriam as indicações para o BC como as que o presidente faz para o STF, pessoas com o “notório saber”, mas “de confiança”, como Cristiano Zanin e Flavio Dino?

Lula já indicou quatro novos dirigentes do BCB, dois servidores da casa, para diretorias com esse perfil, Ailton Aquino e Rodrigo Teixeira, e dois economistas “de fora”, Galípolo e Paulo Picchetti, professor da FGV-SP. No final de 2024, terminam os mandatos de Roberto Campos Neto e de dois outros diretores. Lula terá o “controle” da instituição ao escolher os substitutos, sobretudo o presidente, somando sete nomeados seus de um colegiado de nove.

Como isso vai alterar a política monetária?

Espera-se que não haja alteração em 2024 e adiante. Tal como se passou em 2023.

Resta ver como o presidente fará isso através de suas escolhas, inclusive e principalmente para o lugar de Campos Neto, que terminou o ano de 2023 participando alegremente de churrasco na Granja do Torto em harmonia com o presidente e seu entorno.

A meta de inflação para 2023 era de 3,25% com 1,5% de margem de tolerância, portanto com um “teto” de 4,75% e as expectativas para o IPCA para 2023 aferidas pelo Focus (em 22/12, último do ano) estavam em 4,46%. Ou seja, tudo indica que o BCB cumprirá a meta, embora dentro do intervalo de tolerância. Não haverá “carta aberta” desta vez, e o primeiro presidente do BCB com mandato deixará o seu posto com sua missão cumprida. Talvez tão difícil quanto reduzir o IPCA tenha sido engolir em seco diante de provocações públicas a que esteve sujeito. O “ganho institucional” foi gigantesco.

Foi um ano complexo do ponto de vista fiscal, e os temas principais foram de natureza orçamentária. O enredo começa antes da posse, com a já citada PEC da Transição, um pequeno milagre de governabilidade, pelo qual a legislatura anterior passou uma emenda constitucional em um mês, criando condições para que o Bolsa Família ampliado continuasse a ser pago sem interrupções.

Recriar certa normalidade orçamentária e fiscal era um desafio claro, em vista da singularidade das soluções encontradas para lidar com a pandemia no governo anterior. Não faz sentido fazer política fiscal através de emendas constitucionais. Ou seja, a de transição devia ser a última, ao menos tratando de orçamento.

No corpo dessa PEC, que se tornou a EC126, de 21/12/2022, havia um comando importante, que veio a se tornar o “arcabouço fiscal”. Conforme estabelecido no seu artigo 6, o presidente da República deveria “encaminhar ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável e que [apenas] depois da sanção desse projeto diversos artigos do ADCT estarão revocados, especificamente os que definem a mecânica do “teto de gastos”[1].

O governo encaminhou esse projeto no dia 30 de março, última quinta-feira do mês, no final do expediente. Não foi, como alguns esperavam, uma nova lei para regular o orçamento, a fim de substituir a lei 4.320/1964 e prestigiar o voto da ministra Carmen Lúcia no assunto das emendas ao orçamento secreto. Para a substituição do “teto”, o governo trouxe regras fiscais de natureza macro, que passaram a dominar os debates sobre política fiscal no restante do ano. As declarações e as intenções pareciam boas, sobretudo tendo em vista que o “novo teto”, ou o novo arcabouço, estava sendo proposto por opositores ferrenhos da ideia de “teto” ou mesmo de responsabilidade fiscal e sustentabilidade da dívida.

O “arcabouço” provocou duas famílias de juízos. De um lado, emergiram dúvidas sobre o real compromisso com suas metas, eis que a nova fórmula parecia, em seus aspectos formais, a famosa banda diagonal endógena, de triste memória. Ou seja, parecia uma fórmula de impossível execução, cujo anúncio se esgotava em si mesmo. Seria mesmo para valer? Ou o arcabouço estaria destinado a servir como um “protocolo do gasto”, conforme a definição do professor Rogério Werneck?

De outro lado, as diversas análises de especialistas convergiam em que as metas anunciadas para o resultado primário somente seriam viáveis na presença de ganhos de arrecadação superiores a 150 bilhões. Não parecia um número tão difícil num orçamento de 2 trilhões, mas o silêncio governamental sobre o assunto mostrava que não havia nenhuma ideia sobre como consegui-lo. Eram números à procura de um plano, e não a expressão numérica de um plano de governo.

Seria o prenúncio de uma elevação relevante da carga tributária? Pacotes tributários estariam a caminho? Ou seria simples voluntarismo?

A conta precisa fechar

Inicialmente, o ministro negou a intenção de aumentar a carga tributária: “se por isso se entende a criação de novos tributos ou aumento de alíquota dos tributos existentes, não é a ideia, não é disso que se trata”. Mas passou o restante do ano correndo atrás de receitas, meio capturado pela Receita Federal, trabalhando “no subsolo” das renúncias, bases de cálculo e decisões judiciais (e administrativas), e muito empenhado em evitar algum a contenção de despesas.

Simultaneamente, o ministro precisava afastar a urgência de aumentar a receita do debate sobre a reforma tributária, inclusive para não a comprometer.

O fato incontornável é que se o inflacionismo está afastado, bem como o aumento do endividamento, a manutenção e especialmente a elevação do gasto (investimento) público, que é típica e própria dos governos petistas, dependerão do aumento dos impostos. A conta precisa fechar. Tipicamente, o “fechamento” pela direita se dá através da redução do gasto (do tamanho do Estado). Pela esquerda, o que se apresenta é o aumento nos impostos e de sua progressividade.

O esforço de preservar a integridade dessas metas do arcabouço diante do “fogo amigo” vindo das esferas políticas foi uma das grandes conquistas do ministro Haddad nesse primeiro ano de governo. Não obstante, a novidade representada pelo novo arcabouço fiscal não gerou as expectativas favoráveis que se esperava quanto ao regime fiscal. Tudo dependeria de um equilíbrio político meio frágil, dentro do governo, uma vez que ficava sujeito às vontades cambiantes do presidente da República e de outras lideranças políticas. Portanto, o arcabouço não alterou de forma material o balanço de forças no assunto da política monetária.

A apresentação do arcabouço fiscal parecia destinada a confrontar o BCB com a obrigação de apressar a redução nos juros, uma vez que resolvesse a evidente inconsistência entre a meta da inflação e a política fiscal. Não era uma má teoria, se, de fato, o arcabouço fornecesse a solução para o problema fiscal brasileiro. Só que não era isso.

Pior, até: com o problema fiscal sem solução, muitas perguntas difíceis se apresentavam. Será mesmo possível que o presidente Lula, em seu terceiro mandato, fora de circunstâncias excepcionais no campo das commodities e de heranças magníficas, conseguirá governar com responsabilidade fiscal? A Nova Matriz macroeconômica poderia ressurgir?

A desproporção entre desejos e possibilidades é um problema crônico da política fiscal. A União esgotou sua capacidade de se endividar e não pode pagar suas contas fabricando papel pintado. Exatamente como os entes federativos diante das restrições da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal). O ministro Haddad talvez reconheça o que tem diante de si: Brasília se parece com uma grande prefeitura com problemas de caixa.

Talvez o ministro tenha se iludido em pensar que a União é diferente, pois, em tese, pode emitir moeda e se endividar em variados formatos. Entretanto, dificilmente terá prefigurado que esses truques já estão esgotados há anos.

As primeiras votações importantes, a partir de propostas do novo ministro, ocorreram apenas em maio, com resultados mistos. As vitórias parecem de Lira, as derrotas do Executivo. O governo quase perde a MP 1.154/23 que redefinia a Esplanada (a nova arquitetura dos ministérios). Seria uma crise. A relação com o Legislativo parecia tão frágil em meados de 2023 que era melhor não declarar as prioridades. Com isso, o governo evitava falar de seus planos econômicos, mas conversava e negociava concessões, emendas e mesmo cadeiras em ministérios para o chamado Centrão.

Foi então que veio a notícia do crescimento do PIB no primeiro trimestre: 1,9% de crescimento no trimestre sobre o trimestre anterior, um número muito forte, e bem maior que a mediana das expectativas. Em condições normais uma notícia boa; no entanto, a explicação para a surpresa residiu integralmente no comportamento do PIB agropecuário, 21,6% de crescimento no trimestre sobre o trimestre anterior. Era um “Pibão desconfortável”, conforme definiu um observador arguto (Carlos Alberto Sardenberg, em coluna para o jornal O Globo, de 03/06), uma vez que o governo parece associar o agro ao governo anterior.

Com ventos melhores na economia 2023, ainda que acidentais, tudo se encaixou.

Em junho, começa uma acomodação do rating do país, quando a S&P anunciou que o colocou o risco soberano do país em perspectiva positiva. O upgrade viria em dezembro, depois de votada a reforma tributária no Senado. Em julho, a Fitch faria o seu upgrade, mas todas as agências se alinharam em colocar o Brasil dois níveis abaixo do grau de investimento, e sem perspectiva de ir além disso. É o que temos por ora, e vai ser difícil sair desse nível sem um “fato novo” de certo impacto.

“Carta aos brasileiros” em outro formato

A meta de buscar o investment grade, uma vez adotada, ofereceria uma excelente fórmula para domar os instintos keynesianos do governo, e avançar pautas reformistas. Mas o assunto é tratado com muita cautela. As “reformas” que tanto agradam as agências não fazem parte das aspirações dos governos de esquerda. Talvez por isso mesmo seja considerada “histórica” a reforma tributária. “Histórica” porque improvável, e por isso mesmo um tanto distante do formato ideal.

Com efeito, a aprovação da reforma tributária, o evento que precipitou o upgrade da S&P não era uma pauta da esquerda. Na verdade, a reforma tributária era uma das reformas do Consenso de Washington, e sua justificativa em geral tinha que ver com a melhoria no ambiente de negócios, um assunto bem distante dos ideais históricos do petismo e de Lula.

Ao longo de sua intricada tramitação, ficou claro que o aumento da receita para sustentar um Estado maior não se confunde com a racionalização e simplificação dos impostos sobre o consumo. São temas diferentes. E não deu para misturar.

O fato é que os festejos na aprovação da reforma acabaram sendo reveladores. A pauta era mais transcendente do que parecia, mais do que simplesmente um assunto tributário.

A aposta na reforma tributária talvez melhor se explique pelo cálculo político. Era uma forma de escrever uma “carta aos brasileiros” em outro formato, com o intuito de agradar e assegurar apoios no mundo empresarial.

A energia política a ser empregada no projeto seria muito grande, pois sua tramitação seria, como efetivamente tem sido, longa e tormentosa. O assunto se estendeu pelo segundo semestre, e não terminou em dezembro com a promulgação da emenda. As leis complementares ainda vão consumir muita energia do governo ao longo deste ano e mesmo depois. O prazo total para a computação dos efeitos da reforma pode ser maior que uma década.

Como lição, resta observar que nada parece consumir mais energia política do que encrencas federativas, de modo que tudo o que se pode prognosticar sobre o andamento desse assunto, mesmo na restrita esfera da regulamentação, é que vai se prolongar além do esperado e com desgastes maiores do que pensa.

Nenhum governo foi tão longe quanto este nesse assunto, só resta saber se isto será bom ou ruim, no mérito ou como fato político. É cedo para aferir, mas certamente funcionou para ajudar a aterrissar o novo governo no terreno empresarial.

É compreensível e justa, portanto, a comemoração da sanção da emenda, ocorrida com muita festa em dezembro. É um segundo pequeno milagre de governabilidade que permite certo otimismo acerca das possibilidades de superação dos impasses decorrentes da polarização política. Mas não é o fim desse jogo.

Choques de oferta positivos, como os que operaram em 2023 para explicar o bom resultado das exportações e da balança comercial, às vezes caem dos céus, como no caso do super ciclo das commodities de uns anos passados. Mais seguro, entretanto, é fazer reformas mirando no aumento de produtividade e no ambiente de negócios.

Entretanto, a ênfase nas medidas e pautas reformistas modernizadoras, repita-se, não faz parte das prioridades declaradas do governo e do presidente Lula. Até pelo contrário, para melhor apaziguar aliados “radicais porém sinceros”, ou por afinidade ideológica mesmo, o governo fez gestões, felizmente sem sucesso, para interromper medidas como a privatização da Eletrobras e o marco do Saneamento, por exemplo.

Isso para não falar das ambiguidades do governo na governança da Petrobras.

Pode ser apenas “jogar para a torcida”, manobrar as aparências ou administrar uma coalisão política muito heterogênea. Ou não. Pode ser mesmo falta de liderança e de projeto. Impossível saber. A indefinição do governo na economia 2023, e em especial a sua hesitação do governo no assunto do equilíbrio fiscal, é uma de suas marcas mais visíveis.

Em outubro, refletindo essas dúvidas, o presidente da República deu uma longa e impactante entrevista parecendo querer desqualificar as metas fiscais do governo.

Nada pode ser pior para o ministro Haddad que o “fogo amigo” vindo do Palácio. O grande “plano de governo” na economia 2023 foi o arcabouço e seus números: se isso não é importante, o que sobra?

Haddad sentiu o golpe, e se possui 7 vidas, ou umas 3 ou 4, como se diz da média dos ministros da Fazenda, uma já se foi.

A manifestação de Lula sobre as metas fiscais de Haddad foi comparada ao famoso desabafo de Dilma Rousseff, pelo qual “gasto é vida”, a fala que serviu como marco definidor da Nova Matriz, de triste memória.

Como ilustração para as contradições em que se vê enredado o Ministro, note-se que o arcabouço “determina” uma expansão do gasto primário e, ao mesmo tempo, uma redução do déficit. É claro que essas duas coisas somente podem ocorrer simultaneamente se a receita crescer. Se isso não acontecer, o que vai se passar? Qual a determinação que vai prevalecer? A do gasto ou a do equilíbrio fiscal (na forma da lei de reponsabilidade Fiscal, que também é lei complementar)? São ponderáveis os riscos de desobediência aos ritos da política fiscal?[2]

O próprio presidente da República perguntou, em sua entrevista: “se for necessário esse país fazer endividamento para crescer, qual o problema?”

Pois é. Se o presidente não vê problema, nós temos, então, dois problemas.

Tudo considerado, entretanto, o país está bem mais maduro do que se supõe nos assuntos fiscais. O keynesianismo inflacionista não se confunde com a voracidade microeconômica do Legislativo para avançar no terreno das emendas orçamentárias. Não há nada ideológico na fisiologia, que vive de trocados. Caro mesmo é o desenvolvimentismo inflacionista.

O grande desafio do governo em seu primeiro ano foi o de aprender a viver sob limites, fiscais e monetários. O Legislativo e o BCB cumpriram seus respectivos papeis, a vida seguiu.

Não foi um ano especialmente bom na economia, nem ruim. Houve ganhos conceituais, especialmente relacionados ao desarme de várias bombas, tanto na oposição como na situação, e há muitos desafios pela frente.

Mas a sensação é positiva ao final. O país parece mais preparado para o futuro. Talvez prontidão não seja tudo, como supõe o célebre Príncipe da Dinamarca (‘Readiness is all’, Ato 5, cena 2). É muito, mas certamente não é garantia de sucesso.


[1] ADCT = Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e os artigos relevantes são os seguintes: 106, 107, 109, 110, 111, 111-A, 112 e 114.

[2] A pergunta é feita exatamente nesses termos por Marcos Mendes e Marcos Lisboa em “Sobre o limite de despesas no Arcabouço Fiscal” em Brazil Journal 22/1//2023.

Retrospectiva 2023 na Rio Bravo Investimentos

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“Outubro Vermelho” por Gustavo Franco

A entrevista concedida pelo presidente da República – amplamente publicada e repercutida nos últimos dias, apelidado de outubro vermelho, se tratando de assuntos fiscais – foi um pequeno desastre para o ministro da Fazenda.

Nada é pior que o “fogo amigo” vindo do Palácio, em “on”: o presidente questionando a política econômica publicamente. O grande “plano de governo” na economia foi o arcabouço e seus números: se isso não é importante, o que sobra?

Outubro vermelho e suas crises

No passado, nas incontáveis ocasiões nas quais esse enredo se repetiu, o rito foi o mesmo: o ministro vai ao presidente da República, diz que seu cargo está à disposição, pois pertence ao mandatário, e eles combinam alguma encenação de apoio e confiança, a fim de evitar um pedido de demissão.

O registro é que Haddad sentiu o golpe – e se possui sete vidas, ou umas três ou quatro, como se diz da média dos ministros da Fazenda, uma já se foi. Resta ver como vai resistir e seguir adiante. Será preciso acompanhar.

Não é incomum que o chefe do governo se entregue a exageros verbais com vistas a acalmar setores mais radicais do partido, ou de sua coalizão. Sobretudo esse chefe de governo.

Entretanto, Brasília aprendeu a discernir excessos brancos, de pura retórica, daqueles que são declarações sinceras, fora da caixa e da rotina, e que revelam nuances de divergências materiais que a comunicação oficial se empenha em ocultar.

A manifestação de Lula sobre as metas fiscais de Haddad foi comparada ao famoso desabafo de Dilma Rousseff, “gasto é vida”, a fala que serviu como marco definidor da Nova Matriz, de triste memória.

A ex-presidente está convenientemente bem longe, em Shanghai, alojada e exilada na presidência do NDB (New Development Bank), o banco dos BRICS. Mas suas ideias parecem mais vivas do que se poderia imaginar.

Com isso, Fernando Haddad termina o mês menor do que começou, o que se da o nome de outubro vermelho para o ministro.

O terceiro mandato e suas dificuldades

Somada às declarações sobre o Oriente Médio, as falas do presidente parecem destinadas a solapar a reputação de encantador de serpentes que Lula cultivou ao longo de sua carreira.

Tudo é mais difícil nessa sua terceira presidência, na economia como em Brasília, e a reedição de velhos programas, bem como de velhas receitas para o entrosamento com o Legislativo, e mesmo das falas intuitivas e improvisos do mandatário, não têm produzido bons resultados.

O outubro vermelho trouxe mais que uma fala inadequada do presidente. O encontro anual do FMI e Banco Mundial no Marrocos, um bom termômetro para as aflições econômicas globais, teria sido monótono, não fosse uma grande sombra pairando sobre todos: o conflito no Oriente Médio.

Mesmo que as consequências do conflito no terreno financeiro, ou sobre o preço do petróleo, ainda sejam indefinidas, como o próprio desenrolar e o alcance do conflito, o assunto possui gigantesco potencial desestabilizador.

Brasil: o país das reformas

No terreno legislativo, o outubro vermelho teve ao menos dois destaques, ambos tributários: a reforma (constitucional) nos impostos sobre o consumo (a dita “reforma tributária”) tramitando no Senado, e os avanços na Câmara do PL sobre impostos sobre fundos fechados e recursos offshore.

Os andamentos da reforma tributária no Senado não surpreenderam. O relatório do senador Eduardo Braga (de 25/10, apresentado na Comissão de Constituição e Justiça) chamou a atenção pela ampliação supostamente irrazoável de exceções e do período de transição.

O relatório produziu críticas contundentes, como a de Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda de São Paulo e ex-diretor executivo do IFI (Instituição Fiscal Independente). Para Salto, o texto ficou tão complexo que talvez não valha mais a pena fazer (“Melhor não parir o mostrengo tributário”, O Estado de S. Paulo, 26/10/2023).

A reforma dos impostos de consumo já tinha fracassado várias vezes no passado, desde quando foi primeiro aventada nos anos 1990. A arquitetura melhorou, mas as dificuldades continuam grandes.

O ministro e o governo talvez tenham se iludido que o assunto estava maduro, e assim subestimado os recursos políticos necessários para uma tramitação tranquila.

A pauta do ambiente de negócios, que sempre foi a razão de ser dessa e de outras reformas, não é bem a cara desse governo. O problema será o de evitar o desgaste, afastando-se do tema, o que parece impensável na presença do ministro Haddad.

Xadrez econômico: área tributária

Também no terreno tributário, e mais diretamente na direção de se obter mais recursos para fechar as contas no contexto do arcabouço, veio a aprovação, na Câmara, do Projeto de Lei (PL 4.173), que trata da tributação de offshores, de investimentos no exterior e de fundos de investimentos fechados.

Não há tanto dinheiro em jogo, mas o ministro transformou o assunto numa campanha contra os ditos “super ricos”, e com isso o assunto ganhou importância como um tema de marketing político em desproporção com as receitas que de fato produziria.

O projeto provocou, portanto, sobressalto e desconfiança, sem falar em que pode “sair pela culatra”, por exemplo, se motivar a judicialização da temas aparentemente pacificados, como o “come-cotas”. Conforme lembrado por Marcos Lisboa e Vanessa Canado, o expediente serve para tributar ganhos que ainda não aconteceram, e podem não acontecer.

A Receita se ressente do uso que os contribuintes fazem das regras de “diferimento”, mas o fato é que o fato gerador (a renda) precisa ocorrer, tanto em fundos fechados quanto em offshores. Sem fato gerador não há imposto. Na verdade, sem ganhos já realizados, o que se tem é uma tributação sobre o patrimônio, não exatamente a prevista. E se alguém suscitar a constitucionalidade do “come-cotas”, que parece pacificado na sua incidência sobre fundos de investimento já durante alguns anos?

O uso da ideologia para definir um assunto

O fato é que o governo, e mais especificamente o ministro Haddad, politizou o assunto ao definir o PL como a “taxação dos super ricos”, assunto do qual ninguém de bom senso ousaria se opor. Mais ou menos como se fala sobre o imposto sobre grandes fortunas, que nenhum governo teve a coragem ou enxergou méritos objetivos para implementar. Tampouco este.

Por que o ministro não propõe taxar as grandes fortunas – que é, na prática, o que diz estar fazendo – em vez de mexer nas regras de investimento no mercado financeiro que geram muita espuma e pouca receita? Se é para tributar os super ricos pelo que de fato são, segundo algum critério objetivo que seria preciso definir, por que não o fazer de forma direta?

E a inflação como está?

A inflação está bem-comportada, ao menos por ora, com as expectativas sugerindo que o governo vai mirar (ou deixar-se limitar a) o teto do intervalo de tolerância, tal como se observou na época de Alexandre Tombini.

Para 2023, que já está em grande medida “resolvido”, a meta é 3,25%, e o teto de tolerância é 4,75% (3,25% + 1,50%) e mediana das expectativas (FOCUS de 30/10) para o IPCA está em 4,63% com leve oscilação para baixo. Para 2024, todavia, meta e teto são de 3,0% e 4,5%, mas a mediana das expectativas está em 3,90% com tendência de alta.

Não se espera que o COPOM altere a trajetória de queda de juros já sobre a mesa – com queda de 0,5% – nem o problema que vai haver em meados de 2024 quando começar o debate sobre a “taxa neutra” e também sobre o substituto para Roberto Campos Neto.

Dois nomes foram anunciados para substituir os dirigentes do Banco Central cujo mandato se encerra no final do ano: Paulo Picchetti, para substituir Fernanda Guardado, nos Assuntos Internacionais; e Rodrigo Teixeira, para substituir Marcelo Moura na Diretoria de Cidadania. Picchetti é professor da FGV-SP e Teixeira é funcionário de carreira.  

É um enorme progresso que o inflacionismo esteja mitigado e que se limite a usar “todo o espaço” que lhe permite o sistema de metas sem subvertê-lo. Não é o ideal, mas é a zaga aguentando a pressão do adversário, sem ceder espaço.

As instituições funcionam, ao menos na defesa da moeda

Um outro bom exemplo vindo de Brasília, e especificamente do STF, é a decisão que reafirmou a constitucionalidade da (retomada de imóvel no regime de) alienação fiduciária. A Lei 9.547, de 1997, criou o SFI (Sistema Financeiro Imobiliário) e assim deu efetividade a conceitos, entre outros, como o patrimônio de afetação, a segregação fiduciária de um empreendimento, bases para os CRIs (Certificados de Recebíveis Imobiliários).

Essa é uma lei que demorou a “pegar”, pois era preciso que os tribunais “reconhecessem” seus dispositivos, o que levou muitos anos. Ainda não temos um mercado de “mortgages” como nos EUA, mas o crédito imobiliário livre vai crescendo, bem como as securitizações e estruturas financeiras que apoiam o desenvolvimento imobiliário.

Foram duas décadas até o assunto chegar ao STF, já muito pacificado, mas nem por isso deixou de haver votos contrários, ou seja, pela inconstitucionalidade de retomada de imóvel dado em alienação fiduciária (ministros Edson Fachin e Carmen Lúcia). Surpreende, também, é que o noticiário sobre a decisão tenha sido tão “torto”, enfatizando o poder dos bancos para retirar a moradia das pessoas.  


[1] “O erro do ‘come cotas’” Brazil Journal de 25/10/2023.

Gustavo Franco – Senior Advisor da Rio Bravo

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Acomodação de placas

O realinhamento político em 2021 é visto como um movimento importante na política brasileira.

O mês de julho teve marcas positivas importantes para o governo: a primeira votação vitoriosa do texto base da reforma tributária, o “upgrade” dado pela FITCH para o risco soberano do país e o início do ciclo de baixa na política monetária ocorrido, em verdade, já nos primeiros dois dias de agosto.

Nos três temas, são excelentes começos, mas apenas os primeiros movimentos de caminhadas que podem ser longas e difíceis. De toda forma, esse conjunto proporciona um belo encerramento para o período de “aterrissagem” do novo governo, aí consideradas todas as acomodações de placas tectônicas, inclusive as equações políticas e modus operandi da nova administração. A segunda metade desta nova presidência começa a seguir, e necessariamente há de revelar a verdadeira índole econômica desse governo.

Há um longo caminho a trilhar com o texto da reforma tributária, que ainda vai para o Senado e só depois é que uma lei complementar trará sua calibragem, e no contexto de regimes de transição da cinco anos (para a extinção definitiva dos impostos sendo “reformados” – PIS-COFINS, IPI, ICMS, ISS) e de 50 anos para o regime de incidência do IVA estadual – IBS – da origem para o destino.

Tudo considerado, é uma reforma de efeitos para o longo prazo e de tramitação especialmente longa, mesmo levando em conta o que se passou com outras reformas de complexidade comparável, como a da Previdência, que teve vários capítulos ao longo de muito tempo, inclusive atravessando vários governos.

O “upgrade” na classificação do risco soberano brasileiro não era de todo inesperado. A FITCH estava defasada relativamente à MOODY’S e à S & P, a primeira já com Ba1 e a segunda com BB e outlook positivo, todas convergindo para um degrau abaixo do grau de investimento. Os spreads de risco soberano nos derivativos de “default” (CDS) já estiveram na região consistente com o “upgrade” para o grau de investimento, mas já ajustaram para um degrau mais abaixo: o CDS brasileiro para cinco anos negociou em julho na faixa de 170 bps.

Mas o movimento das agências não acompanha o do spread no mesmo ritmo, ainda mais quando se trata dessa importante mudança de patamar. Mesmo que o grau de investimento seja algo como uma nota cinco numa escala de zero a dez para a nota de crédito – portanto, uma nota medíocre –, é um limiar importante, e tomado como suficiente para os títulos do país perderem a designação de “grau especulativo”. É como passar de ano, ainda que raspando, ou progredir para a série A. Será um marco importante a alcançar, e um objetivo a perseguir para a política econômica do país.

As agências devem fazer uma pausa grave após atingirem o grau de investimento menos um degrau (Ba1, BB+ e BB+, respectivamente para MOODY’S, S& P e FITCH) a fim da aguardar o que a política econômica trará depois de terminada essa acomodação inicial de placas tectônicas, uma imagem eloquente para os primeiros 7 meses da terceira presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. A democracia venceu, as eleições tiveram seus resultados honrados, o Executivo e o Parlamento estão em plena atividade e as ideias econômicas heterodoxas não acharam espaço no governo, ao menos por ora.

Resta ver qual será a efetiva configuração da política econômica da atual presidência. Afinal, a economia não esteve entre os grandes debates no decorrer do processo eleitoral. Em consequência, o programa econômico deste governo tem sido montado em pleno voo, e por ministros que não imaginavam estar nas cadeiras que hoje ocupam.

É claro que havia e continua a haver muito espaço para improviso e voluntarismo, bem como para a influência corporativa das “máquinas”. São grandes esses perigos, basta lembrar da Nova República.

Entretanto, também é verdade que houve um aperfeiçoamento institucional muito relevante, no âmbito fiscal e monetário, incremental e através de grandes reformas, dos quais resultou um país cuja política econômica é muito mais protegida de aventuras heterodoxas.

No plano fiscal, o destaque cabe à LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) tanto pela lei em si, como pela cultura que introduziu na administração pública brasileira nos últimos anos. Cultura que se materializou em normas limitadoras e na orientação e intervenção cotidiana dos tribunais de contas pelo país.

Adicione-se a isso o trauma decorrente do impeachment de Dilma Rousseff, causado por “pedaladas fiscais” e aberta irresponsabilidade fiscal com desastrosas consequências macroeconômicas. Por mais que o presidente se esforce para prestigiar Dilma Rousseff, inclusive se referindo ao impeachment como “golpe” e antagonizando Michel Temer, é grande a cautela para não repetir as políticas tresloucadas no Tesouro Nacional que estão na base do fracasso político e administrativo que foi a presidência Dilma Rousseff.

Mas a principal salvaguarda destinada a proteger o país de experimentações heterodoxas é de ordem monetária e reside na autonomia do BCB (Banco Central do Brasil).

É compreensível o esperneio do presidente da República quanto à perda de poder que esse arranjo de fato representa. É claro que o presidente democraticamente eleito possui, em tese, toda a legitimidade do mundo para fazer tudo errado na economia, seja no Tesouro ou no Banco Central.

Mas é melhor que acerte.

A despeito das queixas, entretanto, parece claro que a autonomia do BCB teve papel fundamental para permitir uma transição política bem-sucedida, ainda que sob imensas tensões políticas.

Independente da reclamação, às vezes mirabolante, espalhafatosa e de motivação marqueteira, sobre a dosagem da política monetária, há pouca dúvida que a sistemática de autonomia do BCB – vale dizer, especificamente, a não coincidência entre os mandatos dos dirigentes do BCB e do presidente da República, estabelecida pela Lei Complementar 179/21 – foi aprovada com louvor e não será alterada.

A contrariedade presidencial é do jogo, mas muito mais importante que o esperneio é a aceitação das regras do jogo, mesmo quando não são do seu agrado. Assim é a democracia.

O presidente da República, afinal, escolheu e nomeou os dois dirigentes do BCB que lhe cabia na forma da nova regra: Gabriel Muricca Galipolo e Ailton de Aquino Santos foram nomeados em 12/07/2023, respectivamente para as diretorias de política monetária (DIPOM) e de fiscalização (DIFIS).

Ambos tiveram sua primeira reunião do COPOM nos primeiros dias de agosto, quando o BCB deu início ao ciclo de baixa na taxa SELIC, com uma redução de 50 bps. A 256ª. reunião teve votação apertada. Na verdade, foi a primeira vez que se observou um placar de 5 a 4 desde que foi criado o COPOM em 1996[1].

Segundo o comunicado ao término da reunião, votaram por uma redução de 0,50% os seguintes membros do Comitê: Roberto Campos Neto (presidente), Ailton de Aquino Santos, Carolina de Assis Barros, Gabriel Muricca Galípolo e Otávio Ribeiro Damaso. Votaram por uma redução de 0,25% os seguintes membros: Diogo Guillen, Fernanda Guardado, Maurício Costa de Moura e Renato Dias de Brito Gomes. 

O noticiário deu grande destaque ao fato de que o voto de Roberto Campos Neto “desempatou” a disputa, pois se ele tivesse votado com o grupo mais hawkish, a redução de 0,25% teria vencido. Mas o mesmo pode ser dito sobre o voto dos dois novos diretores, ambos para a opção mais dovish. Uma nova dinâmica se estabelece no COPOM com a presença de uma “Bancada” mais “branda”, “governista”, ou dovish.

Essa divergência não deverá aflorar nas primeiras rodadas de redução, mas certamente virá logo adiante, quando a SELIC se aproximar da chamada “taxa neutra”, que não se sabe exatamente qual é.

Antes da decisão anunciada no dia 2/8, o Boletim FOCUS prognosticava a SELIC para o fim do ano de 2023 em 12%, portanto, previa 1,75% de queda para ter lugar em quatro reuniões. Depois de 0,5% de redução nessa reunião, e de um comunicado que parece indicar que esse ritmo será mantido, a expectativa para o fim do ano deverá se ajustar.

É também de se refletir sobre até que nível vai descer a SELIC, uma conversa que leva diretamente à estimação da chamada “taxa neutra”, a próxima polêmica da política monetária, a se mostrar mais aguda, provavelmente quando a SELIC cair abaixo de 10%.

Reforma tributária

O ciclo de queda nos juros serve para assinalar, como observado acima, o início de uma segunda fase desta presidência, cujo desenrolar, ao menos no tocante ao Legislativo, terá muito que ver com o rescaldo de alguns dos assuntos desses primeiros meses, em especial com o andamento da reforma tributária, o assunto mais falado no mês de julho.

Será natural que esse tema volte a movimentar o Parlamento, na medida, inclusive, que passa a envolver o Senado.

A reforma tributária é a última das reformas ditas de primeira geração, ou seja, aquelas que fizeram parte do chamado Consenso de Washington. Talvez a penúltima, eis que a abertura continua pendente e encrencada, nem mesmo o acordo comercial Mercosul-União Europeia se consegue encerrar.

Note-se, ademais, que esta reforma tributária trata apenas dos impostos sobre o consumo, e que se espera que venha muita coisa pertinente a outros impostos.

O fato é que as dificuldades foram tão grandes durante todos esses anos, e mormente em razão de tensões federativas, que há um enorme incentivo para que os políticos declarem vitória neste assunto e se movam para outros temas.

O ministro Haddad indicou interesse em esticar o assunto para chegar nos impostos diretos, para os quais provavelmente vai abraçar alguns dos dispositivos do pacote enviado por Paulo Guedes à Câmara, onde chegou a ser aprovado antes de estacionar no Senado. A tributação de dividendos e o fim dos JCP (juros sobre capital próprio) são os temas mais prováveis de serem retomados, especialmente em vista do viés progressista que o ministro tenciona adotar nesses esforços.

Na mesma toada, a tributação de recursos offshore e fundos exclusivos já está no ar, tudo indicando que o governo prepara um pacote tributário de índole arrecadadora e alegadamente progressista no segundo semestre. É claro que essa expectativa não contribui para o ânimo empresarial, e pode desperdiçar boa parte da energia positiva gerada pela reforma dos impostos sobre consumo. Esse pacote do segundo semestre já parece se esgueirar das conversas sobre a reforma tributária, da qual consta, inclusive, um prazo determinado para que o governo a envie ao Congresso, e mesmo algumas ideias de índole populista para impostos sobre propriedade (IPTU, ITDMA e IPVA).

A reforma dos impostos sobre o consumo, entretanto, em vista de sua evidente complexidade e abundância de detalhes críticos, pode complicar o calendário, entrar pelo segundo semestre, e prejudicar a sequência pretendida pelo ministro. Trata-se de um cenário provável tendo em vista o histórico de dificuldade técnica e política da reforma tributária, tema que teimou em permanecer incompleto e inconclusivo por muitos anos.

Senão vejamos.

A reforma atualmente em discussão consiste em consolidar todos os impostos sobre o consumo, que incidem sobre faturamento e valor adicionado, e que pertencem às três esferas da federação, cada qual com suas regras. Três novos tributos são criados: (i) um IBS (imposto sobre bens e serviços) para os estados e municípios, reunindo o ICMS e o ISS; (ii) uma CBS (contribuição sobre bens e serviços), federal, sem partilha e que reúne PIS-COFINS e IPI; e (iii) um imposto seletivo federal, sem partilha, de índole arrecadatória, para incidir sobre bens como bebidas e tabaco, papel que hoje cabe ao IPI.

Os ganhos da reforma advêm principalmente da eliminação do efeito cascata nesses impostos, todos passando a contar com fórmulas de creditamento: (i) os impostos federais sobre faturamento todos se tornariam impostos sobre valor adicionado, no âmbito da CBS, com isso admitindo um creditamento mais extenso do que hoje existe para os regimes não cumulativos de PIS-COFINS; e (ii) a unificação e simplificação do ICMS, ou dos 27 regulamentos de ICMS dos estados, em um único sistema, com as mesmas regras de creditamento, base de cálculo e hipóteses de incidência, inclusive a convergência para a cobrança no destino (se bem que ao longo de 50 anos).

É claro que é discutível se essa movimentação resulta em simplificação, quando o movimento inicial envolve um acréscimo de complexidade. Tem havido muito debate sobre o assunto, e uma multiplicidade de outros temas ficou para o terreno dos ajustes, com destaque para o tratamento de incentivos fiscais e a constituição de fundos de ressarcimento para perdas. A própria fixação de alíquotas ficou para depois, uma vez que se pretende que não haja elevação da carga tributária resultante da reforma, uma conta nada fácil, mas que já se sabe que dependerá dos tratamentos setoriais específicos em discussão, e se definirá em alguma instância administrativa, provavelmente um conselho criado para este fim.

Nada parece consumir mais energia política do que as encrencas federativas, de modo que tudo o que se pode prognosticar sobre o andamento desse assunto é que vai se prolongar além do esperado e com desgastes maiores do que pensa. Nenhum governo foi tão longe quanto este nesse assunto, só resta saber se isto será bom ou ruim. Será bom se terminar bem e rápido, o que parece ser a aposta do governo. Entretanto, pode ser ruim se não terminar, e se o assunto continuar a mobilizar o Parlamento durante muito tempo – nesse caso, dificultando as ações de governo em outras áreas.

Passado o recesso parlamentar, o segundo semestre de trabalho do Congresso terá um contexto diferente, será “um segundo momento” para a política econômica, pós aterrissagem, quando serão menos adaptações e continuações de temas antigos, mas as verdadeiras cartas desta administração. Os juros americanos não estarão mais subindo, e os do Brasil deverão estar em queda, um horizonte de aspecto benfazejo. Julho termina bem, no final do dia 2 de agosto, e uma nova etapa parece ter início. A grande pergunta, e o grande risco passa a ser: o que vai haver de realmente novo na economia na presidência Lula 3?


[1] Para um levantamento dos “placares” anteriores de votações no COPOM, e uma discussão sobre a existência de bancadas no BC ver Franco & Mercadante “Voto divergente no COPOM: uma nota”. Disponível em https://www.riobravo.com.br/voto-divergente-no-copom-uma-nota-2/. Acesso em 4 ago. 2023.

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Em defesa da agenda verde

No momento em que eventos climáticos extremos se tornam cada vez mais frequentes, o Brasil tem a chance de implementar a agenda verde, que são políticas que podem mitigar impacto das mudanças climáticas

por Helena Margarido

Ondas de calor extremas, incêndios, mortes e graves problemas de saúde pública acometem países da Europa, América do Norte e norte da África. Chuvas intensas e fortes inundações atingem o sudeste asiático. Grandes secas, e intensos incêndios florestais, consomem áreas do oeste dos Estados Unidos e Canadá. Recordes de temperaturas são batidos todos os dias, e o mês de julho registrou a semana mais quente dos últimos 150 anos.

Chuvas extremas no nordeste brasileiro, ciclones no sul do país. Aos eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, consequências do aquecimento global, soma-se agora o fenômeno El Niño – que pode durar anos – e a temporada de incêndios (criminosos ou não) na Amazônia e outros biomas brasileiros.

Não se tem precisão científica sobre quanto tempo este fenômeno durará e a intensidade dos impactos, mas as evidências das mudanças climáticas e a urgência no enfrentamento à crise climática têm sido uma constante nos relatórios científicos do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas) há muitos anos.

Ação e conscientização dos governos pelo mundo

Ao longo de um processo negociador que já dura mais de 30 anos, os governos do mundo todo vêm se comprometendo a tomar medidas que impeçam uma catástrofe global. Redução de emissão de gases de efeito estufa, transição energética, fim do desmatamento ilegal de florestas, neutralidade de carbono até 2050, financiamento para políticas de adaptação às mudanças climáticas, justiça climática.

São vários ciclos de negociações, todos os anos, reunindo representantes dos 196 países que assinaram a Convenção do Clima – e, dentre estes, dos 195 que se comprometeram perante o Acordo de Paris, acordo global mais recente para o combate às mudanças climáticas, assinado em 2015, a adotar medidas cada vez mais ambiciosas no enfrentamento à crise que acomete a todos, mas de formas muito diferentes e desiguais.

Enquanto as negociações internacionais são essenciais para estabelecer os parâmetros e constranger os países a se envolverem nas soluções, é no âmbito local que as ações são implementadas. No Brasil, os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro foram pautados pelo obscurantismo: apagão de dados, cortes no orçamento para pastas que lidam diretamente com as questões ambientais e indígenas (dentre outras), cortes no financiamento de pesquisas, negacionismo como base ideológica, desmonte de órgãos de fiscalização (como o IBAMA), incentivos a uma cultura exploratória e colonizadora da Amazônia.

Tudo isso está bem documentado em reportagens, artigos acadêmicos, livros e relatórios produzidos pela equipe responsável pela transição e que forma o governo atual. Há, portanto, muito a reconstruir. Tivemos retrocessos enormes, e agora resta pouco tempo para avançar em temas cruciais, como a construção de uma agenda verde, de um plano de transição para uma economia de baixo carbono, de estratégias reais de desenvolvimento sustentável e de combate ao desmatamento e ao crime organizado que se estabeleceu na Amazônia.

Agenda verde: ponto de não retorno

É inegável que a Amazônia desempenha papel crucial no combate à crise climática, e cientistas têm alertado nos últimos anos que a maior floresta tropical do planeta está bem próxima do chamado ponto de não retorno, ou seja, quando a sua capacidade de absorver carbono entra em xeque. O estudo Nova Economia da Amazônia, publicado recentemente pelo World Resources Institute (WRI) sob coordenação do cientista Carlos Nobre, traz uma alternativa à economia do desmatamento que domina a Amazônia.

Essa alternativa passa por restringir as emissões de gases de efeito estufa, apoiada em transição tecnológica, e por zerar o desmatamento, descarbonizando a agropecuária e a matriz energética. Segundo o estudo, reorientar a economia da Amazônia Legal, com aumento de PIB, geração de emprego e aumento da cobertura florestal, exige um investimento de 1,8% do PIB nacional ao ano, até 2050. Há, portanto, propostas viáveis e executáveis. Mas há vontade política e pressão da sociedade brasileira para que uma agenda verde e social seja de fato implementada?

Iniciativa do governo em defesa do meio ambiente

O governo tem dado demonstrações de interesse em fazer essa agenda avançar, apesar de não haver consenso dentro do próprio governo e de sua base de apoio (como, por exemplo, o velho pensamento desenvolvimentista).

As iniciativas de mudanças vão do nome do Ministério do Meio Ambiente, incorporando as Mudanças do Clima, à criação do Ministério dos Povos Indígenas e nomeação da advogada indígena Joenia Wapichana para presidir a FUNAI à divulgação do novo PPCDAm (Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal), passando pelo anúncio de Belém como sede da COP 30, em 2025.

Em seus discursos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem dado ênfase às políticas de proteção ambiental e de combate às mudanças climáticas. Sob liderança da ministra Marina Silva, mas sob uma perspectiva interministerial e transversal.

Plano estratégico do Ministério do Meio Ambiente

De acordo com as ações e falas do governo, as estratégias para reverter todos os todos os malefícios podem ser agrupadas em quatro eixos:

  • Comando e controle;
  • ordenamento fundiário e territorial;
  • atividades produtivas sustentáveis;
  • instrumentos normativos e econômicos.

Sabemos, no entanto, que interesses poderosos, de grandes corporações ligadas à mineração e do agro, estão bastante representados no Congresso Nacional e que há grandes dificuldades políticas para aprovação de um plano de transição para uma economia de baixo carbono, além dos muitos ataques aos direitos das populações indígenas e à preservação ambiental.

O Brasil tem um grande potencial para a implementação de políticas de redução de emissões, de diversificação de fontes de energia e do desenvolvimento de uma bioeconomia da sociodiversidade, mas sob uma perspectiva essencialmente brasileira e que de fato incorpore o pensamento indígena no planejamento do futuro da Amazônia e do Brasil.

Para que esse potencial se concretize, a demarcação e a proteção dos territórios indígenas são fundamentais. Os desafios, portanto, são imensos. Mas os instrumentos legais e estratégias viáveis já existem, é preciso decisão política. A realização da COP 30 na Amazônia brasileira traz importante potencial de mobilização, mas essas decisões dificilmente acontecerão sem que a sociedade brasileira pressione por uma agenda verde e social.

Só que o tempo para essas escolhas é apertado.

Helena Margarido Moreira, doutora em Geografia (USP), professora de Relações Internacionais e pesquisadora na área de clima e energia.


[1] Disponível em: https://www.wribrasil.org.br/sites/default/files/2023-06/Sum%C3%A1rio%20Executivo%20%28portugu%C3%AAs%29.pdf. Acesso: 26/07/2023.

[2] Por falar em Carlos Nobre, vale a pena conferir a entrevista que o climatologista concedeu ao Podcast Rio Bravo em maio de 2022. “A ciência mundial está muito preocupada com o destino da Amazônia”. Disponível em: https://soundcloud.com/riobravoinvestimentos/podcast-698-carlos-nobre-a-ciencia-mundial-esta-muito-preocupada-com-o-destino-da-amazonia

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